Carla Zaccagnini
[english]
Enquanto assinava meu exemplar do seu encarte para a Bravo!, Carmela lembrava da aula daquela tarde com um sorriso entre cúmplice e provocador: tinha sido boa, não tinha? Horas antes, a apresentação do meu projeto em classe fora recebida com exclamações como “Isso eu não engulo!”.
Tinha sido boa a aula. Porque o que se discutia, tendo aquele projeto como escusa, eram os limites da arte e o papel do artista, os lugares sociais de uma e de outro, as fronteiras que os definem e encerram e outras questões de igual calibre ou fundamento. E se debatiam desde posições que muito tinham que negociar para encontrar uma linguagem comum a partir da qual nomear as discordâncias; o que nos obrigava, a todos, a reformular pensamentos que já se tinham solidificado e a buscar novas formas para dizê-los.
E, em grande parte, era disso que tratava a matéria (palavra preferível ao termo disciplina se compararmos seus sentidos colaterais). Na primeira aula, Desenho, desenhos nos tinha sido apresentada não tanto como um plano de conteúdos, mas como um plano de Carmela para nos fazer trabalhar devagar e passo a passo. Uma proposta de dissecção do processo de concepção e desenvolvimento de um trabalho, para vê-lo e tratá-lo quadro a quadro. A ideia era razoavelmente simples: cada um propunha um projeto e se comprometia a desenvolvê-lo ao longo do semestre. A condição era o tempo: o tempo dilatado. Não teríamos um prazo para chegar a um resultado, como de costume, condição que nos faz sentir o tempo escapando desde o início até que se esgota – mas, ao contrário, seria preciso elaborar demoradamente cada etapa e esclarecer as decisões tomadas a cada bifurcação que encontrássemos. E, cada vez que o projeto parecesse resolver-se antes do fim do curso, era preciso desconstruí-lo para remontá-lo começando por uma outra peça, agarrá-lo por outro lado, dar-lhe a volta.
O curso era resultante, explicava, de sua preocupação diante da impressão (repetida, como outras impressões) de que muitas obras que ela via expostas não estavam prontas, ou tinham sido aprontadas às pressas. Como se não tivesse havido tempo suficiente de maturação, de exercício, de ensaio. Como se, entre a primeira ideia e a forma final, faltassem estágios de destilação; umas vezes, ebulição; outras, condensação; no pior dos casos, ambas. E o curso era resultante também de uma aposta ou uma vontade de pôr à prova a hipótese de que adensar o processo modificaria o resultado visível.
Expor o processo durante seu andamento o altera, quanto a isso não há dúvidas. Transformam-se o pensamento e as ações de antemão, para compartilhá-los com sentido por meio do discurso; e transformam-se de novo, de volta, em resposta a questões que surgem durante a fala e a escuta. Mas o que estava em jogo era, também, o quanto as idas e vindas e os caminhos circulares que podem compor um processo dilatado se percebem gravados, talvez invisíveis ou indizíveis, mas sempre presentes, naquilo que dali resulta.[1]
Se, por um lado, tratava-se de dilatar o tempo de elaboração de um trabalho como uma estratégia para adensá-lo; por outro lado, interessava pensar na coerência entre a construção do processo e a concepção da obra (ou como se queira recombinar essas quatro palavras). Investigar como a estrutura do resultado se vê estampada nos procedimentos que o desencadeiam e vice-versa; como o processo reflete e informa suas consequências, como os caminhos tomados anunciam e ecoam o lugar de chegada. Como, enfim, a obra se define e redefine em cada momento de sua construção, a partir dos mesmos desejos e das mesmas obsessões, dos mesmos sintomas, das mesmas perguntas; em uma palavra, de uma mesma posição.
Pensando de forma ampliada, tratava-se também de encontrar uma certa coerência (certa como relativa, não como correta) que, com sorte, reverbera em cada concreção do discurso de um artista: em suas obras de diferentes escalas e suportes, em cada etapa do processo que as constitui, em sua fala para diferentes públicos, em suas escolhas, em seus escritos, em seus cursos (nas várias acepções do termo).
POR QUE ESCREVO: NÃO UMA JUSTIFICATIVA, MAS UMA INTRODUÇÃO
Por isso, imagino, a bibliografia de Desenho, desenhos era composta por escritos de artistas que relatavam seu processo de trabalho. Lembro especialmente da autobiografia de Akira Kurosawa e das cartas de Gustave Flaubert. O mais revelador era encontrar nesses textos metáforas semelhantes às dos filmes de um, ou um rigor descritivo característico dos livros de outro; ver tomar forma, perpassando esses relatos, um modo de ver e de narrar que reconhecemos das obras terminadas. Talvez tenha sido essa constatação que me fez tomar gosto por esse gênero e iniciar uma coleção de escritos de artistas sobre arte que ocupa uma estante inteira, e bem à altura dos olhos, na minha biblioteca.
Agora estou lendo uma reunião de ensaios de George Orwell[2] e acabei de ler um texto intitulado Por que escrevo, originalmente publicado em 1946. Deixando de lado a necessidade de subsistência, Orwell reconhece quatro grandes motivos para sua atividade, que coabitam, em diferentes graus, e proporções oscilantes de acordo com o contexto, em todo e qualquer escritor (podendo este termo ser ampliado a artista, acredito, com alguns ajustes paralelos no texto). São eles:
1. Puro egoísmo. Desejo de parecer inteligente, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, de revanche com relação aos adultos que nos desdenharam na infância etc. etc.
2. Entusiasmo estético. Percepção da beleza no mundo externo ou, por outro lado, nas palavras e sua combinação acertada. Prazer no impacto de um som sobre outro, na firmeza da boa prosa ou no ritmo de uma boa estória. Desejo de compartilhar uma experiência que parece valiosa e que não deveria se perder.
3. Impulso histórico. Desejo de ver as coisas como são, de descobrir fatos verdadeiros e armazená-los a serviço da posteridade.
4. Propósito político – usando a palavra “político” no sentido mais amplo possível. Desejo de empurrar o mundo numa certa direção, de alterar a ideia de outras pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se esforçar por alcançar.
Com exceção do terceiro, que é mesmo assim sintético, cada um desses motivos tem suas descrições seguidas de esclarecimentos sobre suas formas de manifestação, que excluo deste relato sem deixar de recomendar a leitura completa do ensaio, onde transparece em forma e conteúdo a busca do autor por ver satisfeitas suas quatro razões.
O interessante aqui, me parece, é pensar nesses desejos de diversas ordens e nas suas combinações, todas impuras. Como se mescla esse desejo de vingança quase amorosa com o desejo de provocar uma experiência estética capaz de recriar o entusiasmo que sentimos nós diante do belo; como se mesclam os dois ao desejo de registrar fatos, acontecimentos, episódios ou hábitos para uma posterior análise apta a reescrever a história; como se combinam estes com o desejo de alterar a consciência política do outro e portanto sua vontade e suas ações? Como é que a mistura desses desejos, às vezes manifestos, outras latentes, resulta no movimento que se condensa ora em obra, ora em texto, ora em aula? E como cada um desses desejos podem estar mais e menos aguçados, num mesmo artista, em momentos diferentes.
Numa presumível confissão com algo de falso testemunho, Orwell diz que por natureza, e entende “natureza” como o estado em que se chega à idade adulta, os três primeiros motivos teriam nele peso maior que o último. “Mas então veio Hitler, a Guerra Civil Espanhola etc.” e, desde 1936, cada linha sua foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo.
PERO NADA PUEDEN BOMBAS, RUMBA LA RUMBA LA RUMBA LA,
DONDE SOBRA CORAZÓN, ¡AY CARMELA! ¡AY CARMELA![3]
É curioso como há figuras que só são possíveis num texto, que se constroem à medida que vão moldando a linguagem, desenhando os parágrafos e desencadeando conclusões ou novas hipóteses delineadas de dentro da lógica, temporária e tênue, que vai sendo criada por uma palavra depois da outra e reinaugurada a cada nova frase que, ao mesmo tempo, a permite e a demanda. Cada afirmação escrita resulta do terreno preparado pelas anteriores e as redefine, limita as possibilidades do que pode ser dito depois e permite dizer ideias que antes não teriam lugar onde se concretizar. Desenho, desenhos, desenhos, desenhos etc.
Quando comecei este texto pelo relato daquelas aulas, não sabia que ele desembocaria no livro de Orwell nem, muito menos, que por este chegaria à canção da Guerra Civil Espanhola que comecei a escutar como distração e que agora se apresenta como uma chave para o entendimento da obra a que se dedica este escrito, que por ora falava de outras coisas.
Talvez tenha sido por ter visto antes, sem perceber, o LP Chansons de la guerre d’Espagne, com Guernica na capa e as letras vermelhas, pousado de enfeite na biblioteca quase vazia deste apartamento emprestado. Claro que a lembrança da música se fez presente porque ressoava o nome: Carmela. Fui procurar para ver quem era a personagem aclamada na canção de combate e resistência, mas não se sabe, parece. Ou não importa.
A evocação de um primeiro nome, nesse lamento repetido e ritmado, parece cumprir aqui uma função: remete às relações cotidianas e assim redimensiona a guerra. Canta-se o medo dos bombardeios (“Ay Carmela!”), canta-se a força das tropas (“Ay Carmela!”), cantam-se as vitórias recentes e as próximas batalhas (“Ay Carmela! Ay Carmela!”). É Carmela por um motivo que não se fez histórico. É Carmela como poderia ser Pilar ou Dolores.

Em 2002, Carmela Gross escreveu com lâmpadas fluorescentes vermelhas, daquelas que lembram a sinalização rapidamente decodificável do grande comércio, e todas as letras maiúsculas: EU SOU DOLORES. A frase, maior do que a sala que ocupava, saía pela janela ultrapassando os limites do prédio e aqueles que existem entre o espaço público e o privado. De memória, poderia dizer que Dolores é o nome de uma vidente, das que oferecem serviços com garantia em folhetos distribuídos nas ruas, entregues em mãos e lidos nos pontos de ônibus.
Mas talvez também não importe, aqui, a ocupação dessa outra personagem. O que importa é essa alteração na escala e no suporte, essa transmutação de anúncio a enunciado, essa mudança nos mecanismos de comunicação e a transformação na leitura que, por essa mudança, se opera. A mesma Dolores que todos nós não somos, que passamos a não ser quando a afirmação da identidade ganha visualidade pública, assim como a mesma Carmela a que todo um exército dirige seu lamento, tem a dimensão de uma ponte entre espaços irreconciliáveis.
Não somente coexistem aqui, sem por isso firmar trégua, o público e o privado; também o referencial e o abstrato coabitam ou definem esse lugar de potência ambivalente que se pode reconhecer como formador deste e de outros trabalhos da artista. Os QUASARES (1983), por exemplo, ou o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU (1980-1981). Este último talvez seja o que mais diretamente se refere às relações entre o ato de ver e as outras ações capazes de criar imagens.
O PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU é das obras que habitam meu museu imaginário, lembrei desses desenhos uma vez, subitamente, voltando para casa de bicicleta, numa tarde muito branca como podem ser ao norte. Meu caminho atravessava uma área portuária, com um horizonte regular em que uma grande chaminé tinha destaque ao longe, bem mais alta e robusta do que os guindastes que pontuavam a linha d’água. A cor da fumaça sólida, ligeiramente mais escura que o fundo do céu, mimetizava a das nuvens. Pensei: “Agora sim, a fábrica da Carmela”, ou alguma frase parecida, e tirei uma foto menos elucidativa do que este parágrafo.
Não somente o título, mas também parte dos meios de representação utilizados nessa série pertencem ao repertório do desenho técnico. Linhas verticais e horizontais em intervalos regulares e notações em nanquim no pé da página remetem a esses desenhos cuja função é garantir uma leitura inequívoca, com instruções mais precisas que as palavras, de forma a dirigir a construção ou a montagem de uma estrutura assegurando o resultado previsto. Sejam desenhos de arquitetos, ou aqueles que acompanham móveis industriais para armar em casa, informações de segurança em voo ou kits de aeromodelismo.
Por outro lado, somam-se às anotações e linhas em nanquim, áreas preenchidas com lápis de cor, de poucas cores. Um material associado principalmente ao desenho feito por ou para crianças. O desenho infantil tem com o mundo externo à superfície do papel uma relação quase antagônica àquela estabelecida pelo desenho técnico. Onde este último é icônico, o outro é metonímico. O desenho técnico se aproxima daquilo que quer retratar mediante abreviações e sínteses inconfundíveis, que derivarão necessariamente numa consequência dada, ou melhor, preconcebida. O desenho infantil generaliza, não retrata este ou aquele indivíduo específico e sim um grupo, uma espécie, um conjunto de indivíduos sob o mesmo nome, pondo foco num detalhe que o caracteriza como símbolo: a boca enorme e cheia de dentes do jacaré, a casa espiralada às costas do caracol, o cocar na cabeça do índio.
Há também uma diferença temporal ou, ainda, de causalidade entre esses dois modos de representação. Enquanto a criança deseja reconhecer e poder nomear, sobre o papel, um ser como outros que já viu antes, seja no zoológico, no jardim, na televisão ou em livros; o arquiteto projeta o que deseja ver construído, e com sorte terá certo ineditismo. No primeiro caso, é a experiência diante do tigre ou de uma imagem do tigre que se procura reproduzir (talvez movidos pelo mesmo entusiasmo com a beleza descrito por Orwell); no segundo caso, o desenho é ferramenta inaugural, regulador de ações e causador de concreções antes inexistentes. No primeiro caso, o desenho persegue o referente, quer alcançá-lo, caça o tigre, o jacaré, o caracol e o índio (e é provável que agarre primeiro o caracol). No segundo caso, o desenho é comando, palavra de ordem.
Em PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU o desenho é esses dois desenhos, um junto ao outro. Esse projeto é retrato. Talvez sejam 33 retratos do céu em momentos precisos e fugidios. Talvez resulte da experiência (repetida cotidianamente) de olhar e comparar as cores e formas difusas que reconhecemos como sendo o mesmo céu, apesar de suas variações, e seja, assim, a representação de uma somatória de céus justapostos; o retrato de um céu contado de memória. Nesse sentido aproxima-se do desenho infantil. Mas esse retrato é também um plano, como o desenho do arquiteto. O plano para uma sequência (espacial ou temporal) de céu, numerada de 1 a 33 nas diferentes pranchas que compõem a série. Esse projeto para construção é representação de céus já vistos e, ao mesmo tempo, indica as formas e cores, difusas ainda, mas determinadas, de céus subsequentes.
E é impossível afirmar que o projeto não tenha terminado por ser construído passo a passo, que o céu não tenha assumido ou adotado, em 33 instantes posteriores, cada uma dessas configurações. Seria bonito procurar sistematicamente e fotografar 33 céus ou detalhes de céus que reproduzam os desenhos. Posso começar a fazê-lo, embora este, como tantos outros, talvez seja um plano com falhas (de registro e interpretação), que resulte em céus ligeiramente diferentes do previsto. E portanto irreconhecíveis.
Ao contrário desses desenhos que se inserem num tempo indefinido, que ocorre antes e depois do real concomitantemente, as presumíveis fotos congelariam o instante em que as nuvens tivessem a forma buscada e em que a incidência da luz lhes desse as cores necessárias ou desejáveis. Já vimos nuvens assim congeladas antes. Mas NUVENS, de 1967, é, de fato, uma construção projetada, cada parte cuidadosamente recortada uma a uma em material rígido, com espessura de cenário e uma suposta interioridade cor de carne.
Formadas por ondulações quase regulares em um azul turquesa e encerado, as NUVENS se aproximam mais dos cúmulos-nimbos feitos à mão do que daqueles que anunciam tempestades. Têm algo daquele desenho infantil, em que se faz da nuvem uma forma fechada, facilmente reconhecível, num tom de azul que salta sobre o branco. Uma nuvem exemplar, quase. Sua construção é como a espacialização agigantada de nuvens desenhadas com o papel deitado sobre a mesa, que teriam caído em pé ao sacudirmos a folha para livrá-la dos restos deixados pela borracha, ao apagar outras tantas nuvens reprovadas.
Mas é também como se as outras nuvens, as que são conjuntos visíveis de partículas diminutas de água em suspensão na atmosfera, tivessem repentinamente se tornado sólidas e caído imediatamente no chão com o aumento de densidade. E deve ser dessa queda, uma ou outra forma de queda, que resulta a base reta das NUVENS, sua face inferior alisada no impacto com o piso concreto, que não permite as flutuações aéreas, nem aquelas sempre possíveis sobre o papel. A segunda hipótese, a da solidificação súbita de uma forma difusa e transitória é algo parecido com o que se pode ver nos CARIMBOS (1977-1978): a cristalização do gesto expressivo e sua repetição mecanizada.Os 80 carimbos que compõem essa série reproduzem traços, linhas curtas, retas tortas, riscos, rabiscos, grafismos, garatujas, gatafunhos, garranchos, manchas, máculas, nódoas, borrões, pinceladas, e gostaria de encontrar outras 66 palavras para descrever as diferentes consequências dos gestos típicos ou inusitados de quem empunha um lápis ou uma lapiseira, uma caneta tinteiro ou esferográfica ou hidrográfica, um bastão de pastel seco ou oleoso, um carvão, um giz ou um pincel.
A materialização desses gestos efêmeros numa matriz de borracha com caráter burocrático, e suas impressões exaustivamente repetidas, lado a lado, como para preencher metodicamente a folha de papel, põem em jogo sobre a mesma superfície meios de representação característicos da arte conceitual e do abstracionismo informal. Há algo irônico na combinação desses dois legados, mas há também, de novo ou já, o estabelecimento de uma convivência de espaços (ou momentos históricos) irreconciliáveis, no mesmo ambiente potencial.
E há, me parece, uma percepção de potência na abstração, e de potência política, me atrevo a dizer. A repetição dos elementos gráficos reproduzidos nos carimbos tem uma função análoga ao “rumba la rumba la rumba la” na canção republicana espanhola. Naquela música, “rumba la rumba la rumba la” é uma pontuação rítmica e melódica que poderia ser dada por violões ou tambores, mas é cantada em coro, talvez por soar ou se ouvir melhor assim, talvez porque as mãos estariam ocupadas com outros instrumentos. Mas a recorrência desse elemento abstrato serve também como mecanismo inclusivo, todos podemos cantar – “rumba la rumba la rumba la” – mesmo sem saber a letra e mesmo sem falar a língua.
Assim são também as formas nos CARIMBOS: abstratas, repetidas e comuns (ao menos em duas acepções do termo). É como se tratasse, aqui também, de diminuir a distância entre quem fala e quem não fala a língua, quem conhece e não conhece a letra. Esses desenhos não têm nem aludem ao poder de comando dos desenhos técnicos, remetem, se tanto, ao poder limitado e monótono do burocrata senhor dos carimbos que permitem ou negam entrada, saída e permanência. Nem contêm, por outro lado, a admiração que nos despertam os desenhos capazes de nos levar de volta ao lugar da criança, atônita diante de uma representação que lhe entrega o referente como numa experiência sem intermediários.
A simplicidade reconhecível das formas e a tecnicalidade sem surpresas nem segredos dos carimbos de escritório arma uma ponte entre quem detém o discurso e quem ouve ou vê. Somos todos capazes de pinceladas, borrões, nódoas, máculas, manchas, garranchos, gatafunhos, garatujas, grafismos, rabiscos, riscos, retas tortas, linhas curtas ou traços como esses. E o sabemos. Seria bonito, talvez, copiar à mão as carimbadas, usando os diferentes materiais e gestos a que cada carimbo faz referência.
Construir um espaço de trânsito entre aquele que gera o discurso abrigado pelas instituições, selado e aprovado pelos senhores dos carimbos, e aquele que ali entra como ouvinte ou observador é, acredito, fundar um campo de potência política. Um território onde as subjetividades têm que ser renegociadas, onde a história tem que ser revista; um espaço de alerta.
ILUMINURAS (2010), a obra que Carmela Gross idealizou e realizou para a exposição que este catálogo originalmente acompanha, transforma, com um gesto único, o edifício ocupado pelo museu em um espaço de alerta, colocando em evidência ambígua tudo aquilo que ele abriga. Cuidado com o que se guarda e se dá a ver aqui dentro! Mas não só. Neste caso, trata-se também e principalmente daquilo que esse edifício já abrigou.
ILUMINURAS consiste na instalação de 66 sinalizadores giratórios na fachada do prédio hoje ocupado pela Estação Pinacoteca, o mesmo que o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social (DEOPS) ocupou entre 1940 e 1983. A ação é simples e o objeto conhecido. Todos já vimos mais de uma vez viaturas ou ambulâncias com essas luzes acesas e um barulho ensurdecedor. Mas elas passam, quase sempre, e o mais rápido possível.
Aqui a urgência é estática, não se move dali. Dia e noite as luzes permanecem acesas iluminando a rua e o prédio, a rua e o prédio, a rua e o prédio, enquanto giram. Mais visíveis depois que o Sol se põe e o museu fecha, à hora em que os fantasmas, dizem, andam soltos. Mas numa afirmação permanente. E silenciosa. O som que costumamos escutar cada vez que vemos, pela cidade ou em filmes, essas outras luzes de emergência não as acompanha aqui. É um grito mudo. Uma urgência sem tempo, uma urgência em relação ao passado, sem solução nenhuma.
As luzes amarelas giram e o prédio pulsa pulsa pulsa, “rumba la rumba la rumba la”. “…pero nada pueden bombas (rumba la rumba la rumba la) donde sobra corazón…” Difícil acreditar, de fato. Mas canções como esta contribuíram para formar e manter uma ação de resistência.
“Parece-me uma tolice, num período como o nosso, pensar que se pode evitar escrever sobre esses assuntos. Todos escrevemos sobre eles, de uma forma ou de outra. É simplesmente uma questão do lado que se escolhe e da abordagem que se segue. E quanto mais conscientes formos de nossas tendências políticas, mais chance teremos de atuar politicamente sem sacrificar nossa integridade estética e intelectual”, escreveu Orwell em 1946, e poderia ter escrito de novo em 1964, em 1968, em 1984, em 1991, em 2001, amanhã ou ontem.
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[1] Escrevendo agora sobre isso, que não sei se então já pensava, lembrei-me de uma obra que não conhecia e ainda não vi ao vivo: 1.000 hours of staring (1992-1997), de Tom Friedman. Será que ele olhou, fixamente, por mil horas exatas para a mesma folha de papel em branco? Seria esse olhar, sobreposto a ele mesmo ao longo de cinco anos, capaz de imprimir à superfície alguma carga que o título da obra já não lhe transfira? E, se quisermos ir mais longe, essa característica, se existe, não seria alterada pelas outras tantas mil horas de olhares fixos que pousam sobre a mesma folha, ainda branca, depois de emoldurada?
[2] George ORWELL – Why I write, Penguin Group, Londres, 2004 [trecho traduzido pela autora].
[3] Verso de El paso del Ebro, canção republicana da Guerra Civil Espanhola.
Publicado em:
Carmela Gross: um corpo de ideias. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. Catálogo de exposição.
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