A BOCA DO INFERNO de Carmela Gross

Paulo Miyada

Publicado no catálogo de exposição Carmela Gross: BOCA DO INFERNO. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2024.

A artista observa o mundo e suas imagens. Coleciona fragmentos do que vê. Reúne, por exemplo, dezenas de fotografias de vulcões. Um dia, digitaliza e trata essas fotografias em altíssimo contraste. Como carimbos, as montanhas infladas pelo calor incontido se resumem a silhuetas em preto e branco. Impressas do tamanho da mão e coladas em folhas de um caderno, essas fotografias serviram de referência para os primeiros desenhos preparatórios do que meses depois se tornaria a boca do inferno de Carmela Gross.

Com caneta preta, a artista preenche cadernos e cadernos com sombras, silhuetas, esquemas e variações de vulcões. Emprega a repetição como treino da mão – e quem treina se torna ao mesmo tempo mais íntimo e mais indiferente a seu fazer. Chega ao ponto em que pode fazer qualquer acidente geográfico parecer-se com um vulcão, assim como pode tornar a fumaça da erupção sólida como rocha. Está pronta, então, para um salto de escala e uma troca de processo.

Após realizar testes preliminares em São Paulo, Carmela Gross viaja para porto alegre, onde imerge nos processos gráficos da monotipia, assistida pelo vasto repertório do artista gravador Eduardo Haesbaert e valendo-se da prensa que um dia foi de Iberê Camargo. Em amplos gestos, municiados de pincéis largos ou feitos diretamente com a mão, ela espalha massas de tinta negra diluída em óleo sobre uma grande chapa de cobre. A forma esquemática de vulcões retorna como mancha, com marcas gestuais e gradientes de intensidade difíceis de discernir na superfície metálica avermelhada. Uma folha de papel, então, é umedecida e posicionada sobre a chapa, e depois é protegida por uma espécie de manta. O conjunto inteiro – chapa, papel e manta – passa pela prensa, transferindo parte da tinta da chapa para o papel. A depender das características do papel – mais e menos espesso, mais e menos liso, mais e menos claro – algo do gesto se conforma na mancha impressa e irrepetível.

Cento e sessenta vezes, a artista repetiu esse ciclo. A cada vez, uma nova erupção, uma nova silhueta, uma nova densidade do pigmento. Cada uma nem bem melhor nem bem pior que a anterior. Com o acúmulo do fazer, entretanto, o movimento desvencilha-se da tendência ao triângulo escaleno adquirida no desenho repetido dos vulcões. A mancha se faz mais e mais mancha, conforme a artista insiste em seu labor. De tanto ser mancha, entretanto, torna-se também pedregulho, meteorito, buraco, tumor.

A instalação a boca do inferno se faz da disposição de todas essas tentativas, todas essas explosões. Como é viver nas proximidades de um vulcão?  Como é conviver com essas fissuras que há muito ensinaram a humanidade que o tempo geológico segue seu próprio andamento, indiferente ao vai e vem das pessoas e animais?

Os vulcões nos ensinaram, tão antes do desastre auto-infligido do antropoceno, a crueza da fatalidade e do destino. Não obstante, sempre houve quem vivesse aos pés de vulcões, por escolha ou por obrigação, usufruindo da fertilidade do solo misturado com nutritivas cinzas e rochas trazidas das entranhas do planeta.

Vale ponderar porque Carmela, nascida e criada em um país sem vulcões, invocou sua presença em anos recentes da história brasileira. Onde estaria ela encontrando a fumaça, a queima e a destruição advindas de tais “bocas do inferno”? Pode haver uma pista na escolha desse título, que funciona não apenas como metáfora recorrente do vulcão como passagem ao mundo subterrâneo, mas também como aceno ao poeta baiano Gregório de Matos, que recebeu essa alcunha no século XVII. Satírico, ácido, humorístico e, eventualmente, pornográfico, gregório encarou a obscenidade da sociedade brasileira, demonstrou suas contradições de caráter e lhe desejou o pior. Carmela não emprega palavras para responder diretamente ao conservadorismo tacanho de seu tempo, nem aos devaneios autoritários de líderes recentes, e tampouco à política em favor da morte que tem orientado diretrizes econômicas, sanitárias, urbanísticas, educacionais, de judiciárias e de segurança. Ainda assim, ela conclama – enquanto desliza a tinta preta sobre a chapa de cobre – a presença inconformada de gregório.

A erupção, o buraco e o meteorito se refazem simultaneamente como ameaça, esvaziamento, persistência e desabafo.

Em sua repetição do gesto, a boca do inferno de Carmela se perfaz como coleção de manchas. Deixa que entre em cena uma espécie de entropia do signo e da expressão, numa dinâmica recorrente na obra da artista [c.f. CARIMBOS (1978), QUASARES (1983), PEIXES (1990), FACAS (1994) e 300 LARVAS (1994)]. Coloca em cena, ao mesmo tempo, uma sorte de tenacidade na sustentação do processo.

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