A geógrafa, a má revisora e a espeleóloga

Paulo Miyada

[english]


“O mais difícil é virar o céu pelo avesso e trazê-lo azul para o lado de dentro de um labirinto transparente”.
Flávio Motta, “É o B-A-BÁ”, In: Carmela Gross. São Paulo: Gabinete de Artes Gráficas, 1977.

0.1. Riscar a página, fazer espaço
A artista tem à sua disposição dois metros quadrados de parede e uma página do catálogo de uma exposição.[1] Propõe traços para que a folha, cortada, se expanda e englobe o vazio da parede, constituindo um território. Desenho, corte, expansão, espaço instituído.

0.2 Mapas muito abrangentes
A artista concebe cartografias inteiras. Define a melhor escala de representação para que cada uma delas possa ocupar uma folha de papel. Imprime em cada folha a escala escolhida – 1:3.100.000 (31 km por cm), 1:11.000.000 (111 km por cm)….[2] Observa as folhas inteiramente brancas, senão pelas notações de grandeza. É contraintuitivo, mas os mapas já estão prontos, cada folha representa uma porção diferente de espaço vazio, um território latente a ser especulado pelo observador.

0.3. O geógrafo
Mesmo cercada por milhares de obras produzidas em um intervalo de mais de 700 anos, uma tela de 53 x 46,6 cm, terminada em 1669, recebe especial atenção dos visitantes do Städel Museum, em Frankfurt, Alemanha. O Geógrafo, de Johannes Vermeer, destaca-se pelo prestígio de seu autor, pela minúcia de sua fatura e, especialmente, por se tratar de uma diminuta, mas monumental, alegoria da modernidade ocidental.
Na cena representada, acumulam-se elementos que caracterizam o ofício do retratado: globo terrestre em cima do armário, carta náutica enquadrada na parede, papéis sobre o chão, folhas de trabalho sobre a mesa, compasso aberto na mão. Arauto do saber técnico-científico da época, o geógrafo era responsável por deitar no papel os crescentes saberes sobre um mundo em expansão e disputa, criando ferramentas para serem utilizadas nas próximas etapas da expansão colonial europeia. No instante descrito pelo pintor, o profissional suspende seu trabalho – braço esquerdo firmemente agarrado à mesa – e olha pela janela por onde entra a inconfundível luz vermeeriana.
Além das paredes do quarto, além do campo do quadro, através da representação do mapa, está o além-mar: espólio e combustível do desenvolvimento europeu. Do lado de cá da representação, ilumina-se o universo em que ascenderam simultaneamente a brigada mercantil holandesa, o pensamento de Spinoza e a pintura do próprio Vermeer. Em seu avesso, estão os odiosos custos da acumulação primitiva, marcas da exploração que não se explicitam nos mapas nem maculam a alvura da luz que recai sobre eles.
Abaixo da mão que suspende o trabalho num momento de devaneio ou epifania, o desenho que a folha guarda não é apenas testemunho de erudição, é um desenho e, como tal, é simultaneamente: registro, hipótese, descoberta, vontade, forma, linguagem e arma. O desenho é uma arma.

1. O desenho
Três séculos depois da conclusão daquela pintura, do outro lado do Atlântico, a jovem artista Carmela Gross participava pela segunda vez da Bienal Internacional de São Paulo. 1969 era também o ano em que completava sua graduação em Artes na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), segundo a proposta pedagógica que havia sido implantada pelo professor Flávio Motta em 1956, como adaptação do Curso de Formação de Professores de Desenho implantado no Museu de Arte de São Paulo (MASP)
em 1953.[3]
Esse curso, pioneiro, pensava o desenho como disciplina, técnica, instrumento de ensino e campo de pensamento. Flávio Motta foi antes de tudo um educador profundamente comprometido sobre a reflexão sobre o desenho como ferramenta social transformadora. “Desenho e Emancipação”, artigo que publicou no Correio Brasiliense em 1967, resume muitas de suas ideias formadoras que estavam vivas nos anos de graduação de Carmela Gross. Nesse artigo, Motta aproxima a etimologia de desenho e desígnio e, a partir daí, lembra que projetar é lançar-se adiante movido por uma “preocupação”, consciência de uma necessidade comum. A formulação é tão aguda que deve ser aqui reproduzida:

Num certo sentido, ela já assinala um encaminhamento no plano da liberdade. Desde que se considere a preocupação como resultante de dimensões históricas e sociais, ela transforma o projeto em “projeto social”. Na medida em que uma sociedade realiza suas condições humanísticas de viver, então o desenho se manifesta mais preciso e dinâmico em seu significado. Vale dizer que através do desenho podemos identificar o projeto social.[4]

Portanto, o desenho pode muito mais do que supõe o senso comum que o trata, fiel ao sentido literal da palavra anglo-saxã draw, como simples retirada da aparência do mundo, relação tátil com o visível. No contrapelo da reprodução mimética, está a potência do desenho como desejo de futuro que ativamente se abre ao desígnio estimulado pelo entendimento presente de um passado comum – inteligência projetual que catalisa necessidades e imprime intenções em meio a processos de construção complexos e coletivos.
Esse é um entendimento do desenho especialmente caro à arquitetura brasileira – o mais célebre e ambicioso exemplo que pode ser associado a esse raciocínio é o plano piloto de Brasília desenhado por Lúcio Costa em 1957 e o mais sensível talvez seja o caderno de riscos em que Vilanova Artigas projetou, simultaneamente, um novo edifício e uma nova estrutura curricular para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).[5] É também um preceito fundante para a poética de Carmela Gross e demonstrá-lo é um dos objetivos deste ensaio.

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João Batista Vilanova Artigas, caderno dos riscos originais, esquema do curso e croquis, 1961


1.1 Aula de desenho
São diversos os níveis em quem se pode discutir a trajetória de Carmela Gross como uma investida no amplo sentido formador do desenho como prática artística e, mais ainda, como projeto social. O primeiro deles, o trabalho pedagógico, que iniciou já em 1966, no seu segundo ano de graduação.[6]
A artista, junto com Marcello Nitsche, Ana Cristina Rocco e Iza Ribeiro, instaurou oficinas de desenho para crianças em praça pública semanalmente durante 6 anos. Aos domingos, nos fundos da Biblioteca Mário de Andrade, na Praça Dom José Gaspar,[7] o grupo preparava mesas com tintas e papéis e recebia crianças diversas, algumas recorrentes, outras participantes de ocasião. Assim, nos anos imediatamente anteriores e subsequentes ao Ato Institucional Número Cinco (AI-5, 1968), Gross e seus colegas experimentaram uma forma de habitar o espaço público e propor a vivência cívica da liberdade expressiva do desenho – potencial gramática para a projeção coletiva de futuros comuns. Estabeleceram um front de resistência que podia existir à luz do dia, em praça pública, mas abaixo do radar da censura e repressão da ditadura civil-militar brasileira.
Os mesmos motivos que levava a polícia a ignorar o risco subversivo de um grupo de jovens de vinte anos às voltas com materiais de desenho e o alarido de crianças de diversas idades, sob a copa das árvores que os protegiam da luz das manhãs de domingo pode levar o leitor a enxergar hipérbole onde não se pretende nenhum exagero. O raciocínio é o seguinte: em um contexto de ditadura, em que a possibilidade de construção a partir das autonomias das inteligências dos sujeitos parecia cada vez mais remota, é significativo que esses jovens tenham escolhido acreditar que o desenho poderia constituir-se como ferramenta emancipadora e traduzido tal crença no engajamento contínuo e voluntário de mais de duzentos domingos para estar perto de crianças que de outra forma poderiam ter pouca ou nenhuma oportunidade de experimentar coletivamente o livre desenhar.[8] Na arte, como na política, a radicalidade muitas vezes reside na insistência no que parece improvável.

1.1.1. Tarefa de desenho
O primeiro conjunto de obras de Carmela Gross que enfrentou o desenho de modo sistemático e autorreflexivo[9] foi a série de CARTÕES FAMILIARES (1975-6), composta por 21 folhas de papel ocupadas com desenhos à lápis (grafite e de cor), definidos por hachuras repetitivas ao redor de linhas esquemáticas definidas por máscaras. O procedimento era tão metódico, tão desprovido de espontaneidade, que se conjugava em rotação inversa daquela que a artista praticava com as crianças na praça. Quase tarefa escolar de pedagogias hoje ultrapassadas, o labor mecânico levava o desenhar a um grau mínimo.

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Carmela Gross, CARTÕES FAMILIARES, 1975-76

Como se a artista quisesse desaprender tudo, reduzir ao máximo o coeficiente de criatividade para então apalpar, palmo a palmo, as estruturas fundamentais do desenho, ou seja, as engrenagens que tornam esse instrumento tão potente quanto o quer a teoria humanista. Começar, então, pela emergência da forma no vazio deixado entre os traços, a capacidade projetiva que faz da indiferenciação da hachura um fundo de onde a claridade do papel emerge como forma, signo de estruturas ortogonais, encontros de coordenadas e, em seguida, cadeiras, mesas, casas – signos de reconhecimento atávico. Tentativa de flagrar o momento em que o preenchimento autômato da folha, “ruído branco” do universo gráfico, deixa emergir o traço e, com ele, certa intencionalidade, mesmo que restrita a imagens extremamente familiares.
A possibilidade de aparecimento do traço como veículo de alguma intencionalidade já era, naquele momento, uma hipótese de trabalho e, em seguida, tornou-se ferramenta fundamental no trabalho de Carmela Gross.

1.1.2. Despachante de gestos
A série que Carmela Gross desenvolveu em seguida aos CARTÕES FAMILIARES chamou-se CARIMBOS (1977-78). O conjunto multiplicou e esmiuçou uma proposta de 1967, quando a artista participou de uma iniciativa experimental de Flávio Motta no Salão de Brasília.[10] Lá, propunha-se aos artistas que desenvolvessem um carimbo do tamanho de uma folha de papel, para que os visitantes pudessem estampar uma folha e levar a reprodução da obra para casa. O contexto, muito novo e cru, evocava as ambições construtivas da nova capital, enquanto a montagem de mesas e carimbos remetia à máquina burocrática do aparato estatal totalitário instalado no país.

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IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, Brasília, 1968

Carmela Gross propôs então um carimbo com a mancha deixada pelo seu próprio punho entintado e impresso. Marca de um soco, gesto intempestivo seriado para ser infinitamente reprodutível. Na série de 1977-78, o procedimento foi repetido, formando uma coleção de pinceladas, garatujas e riscos carimbados múltiplas vezes sobre folhas de papel.
Assim, com a extrapolação de um princípio burocrático, a artista sufocava o princípio de autenticidade do gesto artístico, filtrando a unicidade do risco até deixar transparecer a mínima quantidade de intensão expressiva, já muito mais próxima da capacidade analítica do que de alguma espécie de pulsão sensual por manusear materiais plásticos. Existe um arco que vai da pintura espontânea das crianças até a repetição seriada do gesto. Esse arco é também uma ponte que liga a insistência apaixonada pelo desenho com a sistematização de sua prática como ferramenta de concepção de espaços.

1.2. Uma arquitetura, mas outra
O que se quis demonstrar até aqui é que o desenho emerge, para Carmela Gross, com matizes de desejo utópico e modelos de ação contraculturais. Por isso, talvez, seu recuo autorreflexivo na linguagem não a tenha conduzido a um cerco de tautologias, mas sim a preparou para empregar o desenho como meio para desencadear complexos processos sociais de transformação do espaço.
A artista criou, à sua maneira, recursos de elaboração de formas espaciais a serem realizadas em um futuro desejável. Nesse sentido, amadureceu uma linguagem equivalente ao projeto arquitetônico tal qual este se entende desde Filippo Brunelleschi,[11] porém provido de outra sintaxe, que atende a fins, critérios e cadeias produtivas distintos daqueles da prática arquitetônica.
Um exemplo didático: décadas depois da realização dos CARTÕES FAMILIARES, a artista retomou seu procedimento com o propósito de implantar uma nova espacialidade dentro de um lugar existente. No galpão que abriga a principal área de convivência do Sesc Pompéia, a artista instalou inúmeras ripas de madeira embaralhadas sobre o chão. Elas faziam o papel de hachuras aparentemente desordenadas que, por uma relação de positivo e negativo, reforçam a presença do sinuoso espelho d’água projetado por Lina bo Bardi.[12]

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Carmela Gross, SEM TÍTULO / UNTITLED, SESC Pompéia, 1990

Outros casos exemplares de como sua prática de desenho, sem tornar-se um recurso transparente, definiu espaços e reais e virtuais: as obras descritas nos itens 0.1. e 0.2., a pintura-objeto EXPANSIVO (1988) e EM VÃO (1999), instalação realizada na Oficina Cultural Oswald de Andrade.[13] É muito importante atentar ao que particulariza a relação da artista com a arquitetura. Para Carmela Gross, o vetor que liga signo e construção não possui um só sentido, como se supõe que seja no ofício dos arquitetos. Em sua produção, existe vai-e-vem (e simultaneidade) entre espaço concreto e linha desenhada, assim como entre representação e projeção, expressão e reprodução.

1.2.1. Uma e três escadas
Em 1965, o artista norte-americano Joseph Kosuth realizou a obra One and Three Chairs (Uma e três cadeiras), em que dispõe lado a lado uma cadeira, sua representação fotográfica e a definição de cadeira em um dicionário. Três anos depois, Carmela Gross produziu sua primeira escada, uma intervenção homônima em que pixou o perfil de uma escadaria sobre um barranco paralelo a uma avenida na periferia de São Paulo.[14] Mencionar aqui essas obras não implica uma sugestão de influência, mas sim uma aproximação de duas atitudes que provocam curto-circuito entre conceito, fato e representação. Como no título dado por Kosuth, a chave é pensar que se tratam de coisas diferentes e, ao mesmo tempo, de uma só construção mental. Como na pixação de Gross, o desconcertante é perceber que se está diante de uma situação una que guarda, na verdade, múltiplos estágios de concretude e virtualidade.

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Joseph Kosuth, One and Three Chairs (Uma e três cadeiras), 1965

Mais comprometida com a experimentação de espaços do que com os choques entre a filosofia idealista e a fenomenologia que tanto interessam Joseph Kosuth, Carmela Gross reencontrou a escada como prisma de percepções e significados em outras ocasiões.[15] ESCADA DE EMERGÊNCIA (2012), especialmente, merece destaque por multiplicar exponencialmente os aspectos projetuais em debate neste texto. A obra é composta por tripés, estruturas metálicas, muitos fios, reatores e lâmpadas fluorescentes verdes e vermelhas. Como em outras obras da artista que utilizam tais lâmpadas, o ponto de partida é o paradoxo de um material que se manipula como se fosse o risco de um desenho, mas se percebe como brilho expansivo que desvia, por ofuscamento, da linha reta do olhar.[16] Nesse caso, ainda, o posicionamento dos tubos de luz traça no espaço duas representações perspectivadas de escadas, sendo que, na verdade, não há propriamente escada nenhuma, apenas o encadeamento de linhas em angulações e alturas previamente calculadas.

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Carmela Gross, ESCADAS DE EMERGÊNCIA, 2012, projeto

Conforme o espectador percorre a sala, portanto, oscila entre perceber a concretude do aparato e visualizar as representações arbitradas pela artista – enquanto seu olho procura em vão resolver o contraste de luminosidades complementares e o deslocamento do ponto de vista enfatiza ou desfaz a verossimilhança da perspectiva de cada uma das escadas. Fica evidente que a obra só é possível pela precisão e elaboração do projeto calcado no desenhar, mas isso não a libera de continuar sendo, a todo momento, um desenho no limiar de se consolidar.

1.2.2. A Geógrafa
Desenhar com algum desígnio, projetar como quem se lança adiante. Carmela Gross teceu sua sintaxe espacial própria, mas não o fez exclusivamente pelo prazer da descoberta de linguagem. Existe uma inquietação nuclear em seu interesse pelo desenho, pela representação e pelo espaço. Seu estudo fundamental sobre o assunto desenvolveu-se no contexto de seu mestrado em Artes, realizado entre 1980 e 1981 na ECA-USP com orientação de Walter Zanini. A noção de pós-graduação de artistas era ainda muito recente no país, e Carmela Gross criou um trabalho referencial ao desenvolver uma pesquisa artística cujo núcleo fundamental é o processo artístico.
A obra/tese em questão é o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, conjunto de 33 pranchas de desenho que experimentam e combinam uma gama de modelos de representação e projeção construtiva da abóboda celeste. Em sua dissertação, Carmela Gross enfatiza seu interesse em estar entre dois pólos: “O desenho se individualiza pelo gesto; desdobra-se na concepção das estruturas construtivas e em notações específicas, como aquelas que se encontram nos mapas”. De fato, ela experimentou, com uma mistura de obstinação e objetividade, a tarefa de representar as nuvens do céu, sua amplitude atmosférica – sem interesse em adentrar os efeitos e debates pictóricos impressionistas, mas sim de manter-se no campo das representações gráficas e técnicas. Desenvolveu um trabalho que combina traços rápidos e sequenciais de grafite e lápis de cor, sem nunca vedar totalmente o papel. Imagem verossimilhante, embora desvestida de imitação virtuosista.
Expandiu esse gesto por toda a superfície do papel e sobrepôs a ele uma grade ortogonal regular, um sistema de coordenadas que mapeia a maior parte da folha. Trata-se de uma assimilação da lógica geométrica fundamental para a imposição da racionalidade técnica sobre a volatilidade da natureza – a matriz ortogonal que funda a pintura e a arquitetura do Renascimento e emerge nas vanguardas modernistas como signo de indústria, razão e esclarecimento.
Na extremidade esquerda de cada desenho, incluiu à nanquim um dos 33 trechos do mapa celeste do Hemisfério Sul, como uma espécie de índice de localização das imagens que se suporiam instantâneos arbitrários do céu. Na extremidade direita, um carimbo que resume as propriedades do desenho – título, autoria, data e número da folha – à maneira do que se faz em projetos de arquitetura e engenharia. Por fim, na borda inferior, uma grade ortogonal com eixo vertical reduzido organiza uma espécie de tradução técnica-construtiva das bordas das vaporosas nuvens representadas a lápis.
O conjunto formado por todas as pranchas agrupadas em 11 colunas enfatiza os dois princípios motores da obra. De longe, vê-se um painel de fragmentos de céu que efetivamente engaja o olhar do espectador em uma deambulação paisagística acentuada. De perto, o acúmulo de códigos associados às mais variadas ciências aplicadas – astronomia, engenharia, arquitetura, topologia, cartografia – desnaturaliza a percepção e enfatiza a artificialidade daquelas representações. O título da pesquisa e da obra, expresso no próprio corpo do trabalho, desembaraça esse paradoxo e o conduz para outra polaridade: ao designar os desenhos como projetos construtivos, Carmela Gross sugere uma tarefa impossível, em que cada índice de tecnicidade é, na verdade, instrumento do absurdo.
É significativa a emergência do absurdo no interior da aparente vontade construtiva, especialmente em um país tão apaixonado pela promessa de construção de futuro, tão dependente de ciclos de euforia coletiva e em que a maior promessa de utopia progressista – a construção de Brasília – havia sido capturada para, ainda em chave desenvolvimentista, ser transformada em seu avesso ideológico.
O céu de Carmela Gross, na verdade, não pode ser nem capturado pelo desenho de observação, nem premeditado pelo desenho técnico. Ele existe enquanto experiência concreta que a artista persegue, sabendo que prepara seu deliberado fracasso.
O geógrafo de Vermeer aglutina signos de elevação intelectual e poder. Banhado pela luz leitos de Delft, contempla a extensão do domínio de sua arma, o desenho que auxilia a expansão dos impérios. Carmela Gross, a geógrafa, não trabalha banhada por tão macia luminosidade.[17] Para ela, o território em que se dá o conflito, o domínio e a conquista não se encontra do outro lado do oceano, mas logo ao lado, em cada esquina da metrópole paulistana. Ela emprega as ferramentas do conquistador, mas as deixa girar em falso, operar na fugacidade das nuvens. Entende a potência (disruptiva) e o poder (autoritário) que podem ser conclamados pelo desenho e, por compreender o real como um território de conflito, engendra paradoxos que conclamam os espectadores a desconfiarem dos códigos e projetos que lhes são apresentados.

2. Fome
No lobby de um luxuoso hotel paulistano, a artista fez ampliar, transpostas para pastilhas amarelas e brancas, as linhas do desenho de Hans Staden que retrata seu encontro com os antropófagos índios Tupinambá.[18]

2.1. Buraco
Durante uma reunião, a artista tinha diante de si uma folha de papel com uma malha ortogonal desenhada com auxílio de uma régua, mas sem excesso de zelo, o que dá à trama razoável regularidade. As linhas e colunas estão numeradas. Com uma caneta esferográfica, rabiscou, rapidamente, 48 manchas diversas. Estava feito seu projeto executivo de uma instalação de aproximadamente 325 m2. Cada mancha rabiscada foi ampliada e tratada como traçado fielmente reproduzido na criação de um buraco em uma laje, 100 vezes maior do que o risco original.[19]

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Carmela Gross, BURACOS, 1994, projeto

2.2. Definir o que não tem definição
Após concluir seu PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, Carmela Gross suspendeu provisoriamente o recurso ao desenho manual e, em 1983, criou uma série inteiramente baseada em processos (desviados) de reprodução técnica de imagens. Seu ponto de partida foram ilustrações retiradas de catálogos de venda, almanaques variados e enciclopédias.[20] A gama de figuras escolhidas pela artista foi ampla, incluindo foguetes, chapéus, pentes, ferramentas de trabalho, halteres de exercício… o significado específico de cada objeto importava pouco, o que lhe interessava era a intuição de um vulto que poderia emergir de seus contornos.
Para produzir tais vultos, ela ampliava por fotocópia cada uma das figuras, obtendo imagens com maior contraste e menos nitidez; descartava algumas tentativas e fotografava as eleitas para a próxima etapa; ampliava, então, os negativos, experimentando intensos desfoques no ampliador;[21] assim, encontrava uma sombra da imagem original. Escolheu 11 deles e os gravou por impressão off-set em folhas de papel de 1 metro por 70 centímetros.

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Carmela Gross, QUASARES, 1983, projeto

Essa tecnologia de impressão conjugou-se com o desfoque dos vultos para produzir imagens de vibração inquietante, que tornam difícil para o espectador desviar o olhar, muito embora seja virtualmente impossível adivinhar a origem das imagens ou seus significados. Carmela Gross nomeou-os como QUASARES, os maiores emissores de energia do universo, maiores do que estrelas e menores do que galáxias, cuja definição ainda estava em disputa naquele momento.[22]
Parece pertinente que esse potente e misterioso fato cósmico tenha emprestado seu nome como introdução às estranhas figuras laboriosamente construídas pela artista. Esse acerto, porém, não deve evitar que se faça uma pergunta: O que é que efetivamente torna essas imagens tão magnéticas? Não pode ser a simples ausência de referencialidade, afinal são muitas as manchas e borrões ocasionais que não possuem qualquer significação evidente e nem por isso atraem o olhar por mais de um instante. Uma hipótese é que a centralidade das sombras nos papéis, sua tendência (nunca completa) à simetria e a alta definição de sua impressão fazem com que a figura, por mais indefinida que seja, identifique-se como algo construído, produzido com propósito: desenhado.

2.2.1. A má revisora
Em A História do cerco de Lisboa (1989), José Saramago narra a vida de um revisor de textos lisboeta relutantemente engajado na revisão das provas do livro que dá título ao romance (cujos fragmentos aparecem em capítulos intercalados com a narrativa contemporânea). Em certo momento, o revisor comete o maior dos pecados de sua profissão: insere uma palavra, uma só palavra (um “não”), em uma parte central da narrativa e, com isso, abre espaço para que a história de sua cidade tenha sido completamente outra, num acumulo de desvios e reinvenções.
Em QUASARES, Carmela Gross age como a má revisora, que nesse caso trai o princípio da reprodutibilidade de diversos dispositivos técnicos consecutivamente. Ela fabrica erro, desenha desvio e, assim, cria algo novo que é percebido como construção, mas que não se pode ler.
Esse é um aspecto da poética da artista que por vezes se esconde por trás da clareza com que ela escreve e se comunica. Não há confusão em sua fala, mas isso não quer dizer que seus processos evitem criar zonas de sombras e hiatos de sentido.[23]

2.2.2. OBJETOS BESTAS, TREM, LARVAS e FACAS
De fato, a mesma natureza “indeterminável” que foi alcançada por transladações imagéticas sucessivas nos QUASARES foi depois perseguida intensamente por outras vias. Para essa hipótese, a PINTURA-OBJETO (1988) deve ser lida como um elo de transição. Trata-se também de um esquema imagético apropriado de uma figura preexistente (nesse caso, alguma vista superior de armas de guerra), que a artista deliberadamente corrói e reconfigura como desenho sobre matéria. O encontro desse desenho vago com a madeira pintada se traduz no corte de dezenas de peças que reestabelecem uma forma se posicionadas com os espaçamentos corretos sobre a parede.[24]
Logo a seguir, entre 1989 e 1994, Carmela Gross investigou, por meio de diversas materialidades e processos, modos de conceber e alcançar formas indetermináveis. Essas investigações incluem, entre outros conjuntos: OBJETOS BESTAS (1989), TREM (1990), 300 LARVAS (1994), BURACOS (1994) e FACAS (1994).
É interessante notar os múltiplos recursos que ela emprega para manter sua capacidade de dissociação de si mesma em cada processo de desenho, algo fundamental para os resultados obtidos. Em OBJETOS BESTAS e TREM, usa a arbitrariedade do título como uma blindagem contra a legibilidade das silhuetas das obras. Em BURACOS, citado no item 2.0.2., eleva abruptamente um croqui à condição de projeto executivo para evitar excesso de elaboração. Em FACAS, troca o gesto de manuseio das argilas toda vez que percebe que está dominou aquele procedimento.

2.3. Articulação
Apesar das ênfases construídas na tessitura deste ensaio, não se deve supor que a vinculação ética e estética do desenho de Carmela Gross com o entendimento do projeto como consolidação de uma intencionalidade forte esteja totalmente blindada da descoberta maliciosa de materialidades de legibilidade relutante. Na verdade, o desenho, para essa artista, possui o caráter de dobradiça entre esses dois polos. Seu desenho conjuga construção e indeterminação.
US CARA FUGIU CORRENDO (2001) e HOTEL (2002), por exemplo, são duas obras que combinam elementos luminosos para estabelecer escritas em espaços específicos. Em ambas, o desenho é fundamental para conduzir o processo que leva da enunciação até uma grafia específica. Em HOTEL, todas as decisões (a escala, a forma retilínea, a composição com materiais industriais standard) foram tomadas visando reiterar a clareza do signo, inclusive tornando-o mais eficaz como letreiro posicionado sobre o edifício da Fundação Bienal de São Paulo e perceptível desde o tecido urbano e a malha viária circundante. Já em US CARA FUGIU CORRENDO, o desenho atuou como retardador da leitura, como corte e alongamento dos traços, diluição e desvio da grafia explícita (embora incorreta) da sentença traduzida para o neon.

2.4. Última pintura
A última pintura de sobre tela feita por Marcel Duchamp data de 1918 e chama-se Tu m‘. Trata-se de uma obra intrincada, composta pelo encavalamento de quase uma dezena de sistemas de representação. A experiência é vertiginosa, inclusive porque a obra foi pensada para estar no batente de uma porta, para ser vista de baixo para cima. Mimese, colagem, abstração, diagrama, projeção cartográfica, decalque de sombras, perspectiva linear, perspectiva cônica, indicialidade, descrição de trajetória, composição abstrata, iconografia e assemblage formam uma charada pictórica que muitos pesquisadores concordam em tratar como uma espécie de súmula do repertório visual que Duchamp construiu em seu primeiro ciclo de criação artística e desdobrou em seus ambiciosos projetos subsequentes.

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Marcel Duchamp, Tu m’, 1918

Alguns intérpretes vão mais longe e especulam que a pintura é uma resposta radical – que vai muito além das aplicações simplificadas dos manuais de desenho – das reflexões sobre o espaço apresentadas pelo matemático e filósofo Henri Poincaré em seus tratados de perspectiva:

O espaço, considerado independentemente de nossos instrumentos de medida, não tem, portanto, nem propriedade métrica, nem propriedade projetiva, tem apenas propriedades topológicas (…) ele é amorfo, o que significa que ele não difere daquele que se obteria por uma deformação contínua qualquer. De que forma a intervenção de nossos instrumentos de medida, em particular dos corpos sólidos, dá ao espírito a chance de determinar e organizar mais completamente esse espaço amorfo; como ela permite à geometria projetiva traçar uma rede de linhas retas, à geometria métrica a medir as distâncias entre pontos…[25]

Duchamp tratava o espaço como fenômeno mais complexo do que previa a geometria euclidiana, sendo pioneiro na consideração enfática do papel da memória, do raciocínio e do desejo no processo de percepção (e representação) de um espaço que, se não existissem esses dispositivos, permaneceria entregue a seu caráter amorfo.

2.4.1. Tratado pictórico prático
Para Carmela Gross, o importante não é falar em termos de uma última pintura, mas sim de uma pintura última, quer dizer, de uma obra síntese de sua relação com o espaço pictórico. Nesse sentido, pode-se apontar sua instalação realizada na XX Bienal de São Paulo em 1989. Trata-se de um ambiente definido por 4 paredes expográficas de madeira.
Em duas delas, opostas, estão grandes murais que confrontam o vigor do gesto gráfico expandido com a resistência dos materiais: grafite rabiscado sobre a parede com intensidade dentro de limites definidos por moldes cortados em papel kraft, posteriormente coberto por una fina manta plástica translúcida de tom rosado; graxa aplicada manualmente sobre papel metálico prata colado na parede, evocando duas das formas delineadas no outro painel.

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Carmela Gross,  XX Bienal Internacional de São Paulo, 1989, montagem

Imensos, os painéis abraçam o corpo do visitante e promovem um complexo jogo de similitudes e inversões. Entre eles, de um lado, está uma pintura-objeto feita de quatro peças de latão recortado, linhas que quase convergem para um centro comum em suas inclinações assimétricas. Do outro, está um objeto composto de dezenas de discos de mica vagamente arredondados e que, atravessados por uma barra horizontal, criam uma saliência no espaço. Lança e alvo, respectivamente.
O conjunto inteiro um tratado prático sobre o espaço pictórico pós-Duchamp. Improviso, resistência, premeditação e fenomenologia se embaralham em uma cena imersiva. Fisicalidade do raciocínio plástico ou, ao contrário, equação de regimes de visualidade.

2.5. A espeleolóloga
As gerações de artistas brasileiros que cresceram nas décadas de 1960 e 1970, quando a maior parte da população passava a estar concentrada nos espaços urbanos, apresenta marcas do convívio com as transformações paisagísticas e ambientais em curso. Cercados por estímulos imagéticos crescentes, cada vez mais dominantes na paisagem urbana, esses artistas muitas vezes manifestam algum mecanismo de defesa, assimilação ou reação ao apelo desbragado dos signos pré-fabricados da propaganda de massa e da arquitetura das grandes empreiteiras.
Nesse sentido, é consagrada a interpretação crítica feita sobre os artistas da Nova Figuração, cuja obra é comumente lida como apropriação paródica da nova imagem vernácula das metrópoles, seja em seus centros ou periferias. Os primeiros trabalhos de Carmela Gross podem ser aproximados dessa atitude.[26] Noutro momento, é possível interpretar as atitudes plásticas da Geração 80 como reação à visualidade das cidades do capitalismo neoliberal, nesse caso, porém, o que se nota é a ansiedade em produzir imagens tão gritantes quanto aquelas circundantes – um cabo de guerra pela atenção hiper-excitada do espectador. Em comparação a essa atitude, Carmela Gross opta por caminhos menos histriônicos e mais camaleônicos, como se percebe por suas obras concebidas como luminosos voltados para a cidade.[27]
A resposta mais radical da artista aos estímulos do espaço urbano, com a qual se conclui este ensaio, é a obra A NEGRA (1997).[28] Feita em tule negro armado por uma estrutura de metal sobre rodas, a obra resume a dupla agência do desenho como ferramenta de planejamento construtivo e criador de indeterminação.
Com seus 3,30 metros de altura, a peça foi concebida como escultura urbana móvel apta a circular pelo canteiro central da Avenida Paulista. A geometria da estrutura conforma um espaço oco, recoberto por grande quantidade de tecido para configurar uma silhueta indistinta e irredutível.

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Carmela Gross, A NEGRA, 1997, projeto

No meio dos arranha-céus, automóveis, pedestres, sinalizações e propagandas da avenida mais célebre da maior metrópole do país, A NEGRA não almeja ser mais um signo comunicante desejoso de atenção. Ela é um vazio, um ponto cego móvel na paisagem.
Em certo nível, pode ser percebida como uma alegoria que responde à famosa pintura homônima de Tarsila do Amaral, atualizando a caracterização da alteridade autóctone brasileira ao substituir o exótico corpo de origem africana pelo massivo volume de corpos invisíveis, Macabéas de muitas origens e feições.
Noutro nível, é uma lacuna espacial premeditada. Para utilizar o vocabulário da artista, ela é um quasar urbano.
No cruzamento, penso A NEGRA como uma alegoria da parcela da cidade que não se deixa apreender pelas estatísticas, pelos dispositivos de vigilância, pelas pesquisas de opinião, pelos perfis demográficos. É uma caverna onde cabe aquilo que os aparatos do poder não fazem questão de ver, mas que pode abruptamente surpreendê-los. Houve situações em Junho de 2013 em que parecia que A Negra estava nas ruas. Logo a sensação passou. Vieram outras cores, identificadas com a banal disputa entre torcidas.
Mas a negra pode voltar.
Espeleóloga é aquela que estuda formação das cavernas e grutas escuras.

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A artista é convidada para realizar uma intervenção permanente em um novo equipamento cultural no centro de São Paulo, o Sesc 24 de Maio. Trata-se de um projeto que só foi possível pela convergência de dois grandes arcos de pensamento civilizatório[29]: a ambição técnico-social da arquitetura paulista maturada por Paulo Mendes da Rocha e o projeto humanista da rede Sesc financeiramente impulsionado pelos anos de crescimento econômico nacional, agora interrompidos.
Nesse local, Carmela Gross resolve instalar, ao redor de uma monumental caixa d´água que ladeia a principal passagem ao nível da rua, um neon rosa que, com uma grafia amolecida, escreve: “O Grande Hotel”.[30]
É um convite. É uma ironia. É um desafio.
Flávio Motta lembrava que “através do desenho podemos identificar o projeto social”. Carmela Gross devolve a formulação ao presente como quem afirma que através do projeto social poderemos significar o desenho.

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[1] Exposição “Dois Metros e Uma Página”, Cooperativa de Artistas Plásticos de São Paulo, 1980.
[2] Trabalho apresentado na 2ª Edição de Gerox na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1980.
[3] Para breve histórico do curso, ver BRAGA COSTA, Juliana. ”Ver não é só ver. Dois estudos a partir de Flávio Motta”. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.
[4] Flávio Motta, também professor da FAU-USP entre 1952 e 1983 e participante engajado em suas reformulações de ensino da década de 1960 é um dos responsáveis pela presença de tais noções no ideário dos arquitetos paulistas formados no período pós-guerras.
[5] A proximidade de Carmela Gross com a arquitetura – no sentido mais forte e humanista que essa palavra possa ter – reflete-se em sua proximidade com arquitetos: da já mencionada formação com Flávio Motta à amizade longeva com Paulo Mendes da Rocha, passando por seu envolvimento no projeto do Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Osaka (1968-70, em equipe coordenada por Mendes da Rocha, com Motta, Ruy Ohtake, Júlio Katinsky, Abrahão Sanovicz, Jorge Caron e Marcello Nitsche) e pela trajetória profissional de seus filhos Lua e Pedro Nitsche, hoje jovens arquitetos.
[6] Adiante, em 1972, Carmela Gross foi contratada como professora de Artes Plásticas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Sua prática como professora universitária, portanto, seguiu paralela à uma enorme parcela de sua trajetória como artista. Um relato cativante desse papel de Carmela Gross encontra-se no artigo “Desenho, desenhos: a título de prólogo”, de Carla Zaccagnini (In: “Carmela Gross: Um corpo de ideias”. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010.)
[7] As primeiras tentativas foram na Praça da República, mas logo as oficinas passaram à Dom José Gaspar, onde se instalaram definitivamente.
[8] O ensino de artes nas escolas existiu apenas tentativamente até as décadas de 1950 e 1960, quando experimentos continuados começavam a amadurecer na instância ainda pontual das Escolinhas de Arte do Brasil e das Escolas Experimentais. Em 1964, com o Golpe Militar, as turmas experimentais foram fechadas e a situação regrediu. Em 1971, com a Lei de Diretrizes e Bases 5692, o ensino de artes nas escolas tornou-se obrigatório pela primeira vez. A experiência da Praça Dom José Gaspar abraça justamente o período em que parecia impossível qualquer avanço na estrutura pedagógica das escolas em favor da experimentação artística. Ver: BARBOSA, Ana Mae. “Arte Educação no Brasil: do modernismo ao pós‐modernismo”. Revista Digital Art&, out. 2003. Disponível em: <www.revista.art.br/site‐numero‐00/anamae.htm>
[9] O reconhecimento desses trabalhos como pesquisa autorreflexiva aparece na leitura que Ana Maria Belluzo faz da produção da artista em “Carmela Gross”. São Paulo: Cosac Naify, 2000. Convém destacar também que esse é o período em que Carmela Gross esteve mais próxima de Regina Silveira e Júlio Plaza, referências no debate da especificidade dos novos meios e na metalinguagem teórico-prática sobre dispositivos linguísticos.
[10] Na 4ª edição do Salão de Arte Moderna do Distrito Federal.
[11] No começo do século XVI, em Florença, o projeto da cúpula da catedral de Santa Maria del Fiore tornou-se célebre não apenas pela grandiosidade da obra final, mas pelo uso da perspectiva por Filippo Brunelleschi como ferramenta que lhe permitiu antecipar inúmeros detalhes do projeto de uma estrutura complexa. Esse momento é tratado por alguns como a virada de afirmação da arquitetura como arte maior no contexto do Renascimento, já que tornou o projeto, coisa mental, soberana sobre a artesania do canteiro de obras.
[12] Instalação Sem título na mostra Gente de Fibra, 1990. Esse procedimento que combina hachura, preenchimento e forma aparece diversas outras vezes na obra da artista, inclusive como modo de conectar escrita e espaço, como em Aurora (2003) e Sul (2006).
[13] O processo que liga desenho e espaço no desenvolvimento dessa instalação foi registrado com clareza no vídeo sobre Carmela Gross produzido por Luiz Duva no ano 2000, para a exposição Investigações: O trabalho do artista, no Itaú Cultural, São Paulo.
[14] Fortuitamente, essa intervenção foi escolhida como ponto de partida da exposição individual da artista “Arte a mão amada”, realizada em 2016 na Chácara Lane com curadoria de Douglas de Freitas.
[15] Suas escadas mais monumentais, sobre a qual não convém alongar-se aqui, são aquelas das instalações Escadas, realizadas no Sesc Belenzinho e na Casa França-Brasil, ambas em 2012.
[16] A obra de Carmela Gross que concentra uma espécie de tratado poético sobre o uso escultórico, espacial e gráfico da luz é seu Comedor de Luz (1999).
[17] Na verdade, segundo relatos da artista, quando suspendia o lápis ou a caneta nanquim no ar, o mais provável é que a interrupção viesse do choro de um de seus filhos pequenos durante uma madrugada mal dormida.
[18] Desenhos publicados originalmente no livro Wahrhaftige Historia (História Real, 1557). O painel de Carmela Gross, de 4 metros de altura e 17 metros de comprimento, foi instalado com pastilhas Vidrotil no Hotel Renaissance em 1997.
[19] Buracos (1994), Arte/Cidade I, Antigo Matadouro Municipal, São Paulo.
[20] Tratam-se de arcabouços de figuras que catalogam de modo voraz os objetos e signos do mundo vigente; antecedentes, portanto, do imenso banco de dados acumulado na rede global da internet.
[21] Trata-se de processo fotográfico analógico, evidentemente, em que o ampliador projeta a imagem do negativo sobre o papel fotográfico. A praxe é ajustar perfeitamente o foco da lente do ampliador, mas nada impede que alguém, deliberadamente, desfoque a ampliação ao manipular esse aparelho. Hoje, todas as operações feitas pela artista com uso de variado maquinário poderiam ser repetidas em minutos com o auxílio de um software digital de processamento de imagens – algo se ganharia e algo se perderia.
[22] Hoje, há consenso científico de que os quasares são buracos negros supermassivos cercados por um disco de acreação de gases.
[23] Em termos ideológicos, existe a tentação de mencionar aqui o conceito de Informe tal qual enunciado por Georges Bataille, posto que ele concebia o informe como refutação das divisões hierárquicas de formas e conceitos pela racionalidade ocidental, e esta negatividade é um dos sentidos atribuíveis ao “indefinível” na obra de Carmela Gross. Esteticamente, porém, a familiaridade da artista com o desenho e o projeto torna a aproximação exagerada: sua produção tem forma, mesmo quando esta se prova indefinível.
[24] Simultaneamente, a artista produziu Arco (1988), que faz o caminho contrário: pedras de formato aleatório são colhidas, pintadas e tornam-se uma forma forte pelo arranjo quase geométrico na parede. Existe um efeito de dobradiça nas estratégias de desenho de Carmela Gross que será discutido adiante.
[25] POINCARÉ, Henri. “Derniers pensées”. Paris: Flamarion, 1913, pp. 59-60. Apud. MOLDERINGS, Herbert. “Tu m´. La peinture face à l´espace amorphe.
[26] Objetos como as Nuvens (1967) e pinturas como Montanha (1970).
[27] Eu sou Dolores (2000), Hotel (2002), Aurora (2003), Luzia (2003), Real People/ Are Dangerous (2008) e Iuminuras (2010).
[28] Obra comissionada pelo projeto Diversidade da Escultura Brasileira Contemporânea, Itaú Cultural, 1997.
[29] No momento em que se escreve este texto, a abertura desse edifício desponta como único movimento significativo no sentido de praticar o espaço urbano do centro da cidade como bem público; os tempos são de barbárie e exclusão ostensiva.
[30] Enquanto desenho, a proposta parece uma espécie de prole nascida do encontro entre Hotel e Us Cara Fugiu Correndo, ambas discutidas no item 2.3.1. deste ensaio.

Publicado em:
FREITAS, Douglas de (org.). Carmela Gross. Rio de Janeiro : Cobogó, 2017.

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