A gigantesca cartilha de Carmela Gross para enfrentar o mundo

[1]
Douglas de Freitas

[english]

 

Entre setembro de 2016 e abril de 2017, a Chácara Lane foi tomada por um conjunto significativo de obras que compreende um recorte de cinco décadas de produção de Carmela Gross, numa espécie de retrospectiva, em que períodos distintos da produção da artista são pontuados. Ao mesmo tempo, foi proposta uma leitura que ressalte o caráter desafiador do trabalho, o burlar fronteiras entre desenho, máquina e mão / cidade, multidão e indivíduo, que possa destacar suas ferramentas de questionar a ordem estabelecida, seus assaltos imagéticos, e apresentar suas armas de enfrentar o mundo e a arte.
A exposição procurou mapear as diferentes estratégias de enfrentamento da artista, apresentando uma espécie de cartilha de operações e materiais, na tentativa de estabelecer um recorte coerente com a totalidade da obra.
Além disso, enfrentou-se o desafio de como apresentar obras que lidam com situações específicas, adaptando-as para outra situação, com o cuidado de manter sua integridade conceitual, fazendo com que elas construíssem diálogo com o novo espaço.
A remontagem de instalações e intervenções de grande escala, como EU SOU DOLORES, realizada para a quarta edição do Arte-Cidade, e a instalação realizada em 1992 para a Capela do Morumbi, agora remontada na mesma Capela, revelam a ambição de estar na cidade que a obra da artista tem, e que se rebate na exposição. Seus trabalhos partem de signos da cidade; voltar-se para ela parece destino certo.
A exposição teve como ponto crucial explorar o processo da artista, revelar seu modo de operar, seu pensamento. Por isso os textos que acompanharam as obras eram os escritos de Carmela, reflexões sobre seus trabalhos realizados ao longo dos anos, que agora seguem compilados neste catálogo.
Também foram reunidas pela primeira vez as pastas-projetos da artista, apresentadas em fac-símiles; esses arquivos contêm o conjunto de estudos preparatórios para suas obras. Torná-los públicos é ato corajoso de Carmela Gross – expor seu processo, com suas dúvidas, recortes e acertos. Incluí-los na exposição foi também estratégia da curadoria de burlar a limitação de um recorte espacial, driblar a impossibilidade de apresentar mais trabalhos, tão significativos quanto os que estavam expostos.

“Poéticas do signo”[2]
Em uma das diversas conversas banais que tive com Carmela, entre muitas outras sobre seu trabalho e a exposição, ela comentou que levou muito tempo até perceber que nuvens são brancas e não azuis. Esse comentário me pareceu extremamente interessante, pois simbolizava exatamente o que eu entendia como início e principal cerne do trabalho da artista, o mundo mediado por imagens e signos.
São esses elementos com que convivemos desde sempre, que simplificam o mundo, achatam a percepção e fazem com que vivamos com uma série de conceitos prévios sobre as coisas, sem questioná-las, ou refletir sobre elas. Não é a toa que NUVENS, de 1967, é o trabalho que a artista considera marco inicial de sua obra. Composto por várias nuvens de madeira esmaltadas de azul de desenho simplificado, como as nuvens que desenhamos quando criança, apoia-se no chão seccionada na base, como se tivesse caído do céu. Outra secção, agora no corpo de uma das peças, mostra um interior vermelho carne, que reforça a materialidade dessas nuvens, confere corpo a elas, as distancia das nuvens reais, leves e imateriais, condensando em seu azul todo o peso da imensidão do céu.

  • Na intervenção ESCADA, de 1968, o caminho é o mesmo. Nela Carmela realiza o desenho de uma escada esquemática vista de perfil com spray preto sobre um barranco. Os degraus da escada-desenho coincidem com os desníveis do barranco. Desenho, projeto e ideia aderem ao mundo e ganham corpo. Assim também é A NEGRA, garatuja gigante impressa na cidade, um chumaço de linhas errantes, vazia de corpo, mas cheia de si. Por ser móvel, podia ser carregada. Transitou e habitou a avenida Paulista em 1997.[3]
  • Também de 1997, FECHE A PORTA[4] materializa as linhas do desenho no espaço e, através da mobilidade, faz com que ele se desconstrua e se converta. Símbolos de poder, essas cadeiras de desenhos esquemáticos estão construídas em ferro revestido de cera e grafite, suspensas do chão e articuladas à parede. Divididas ao meio, suas metades são móveis; quando manipuladas, as cadeiras se desconstroem e se armam em armadilha, apontando suas hastes para quem as movimentou.
  • Letras também são signos, quando articuladas são ferramentas de representação. Em PENSAS, ACHAS, PODE, GOSTO,[5] de 1996, letras-desenhos realizadas individualmente em monotipias sobre tecido constroem as quatro palavras na parede. No entanto, a montagem da obra não segue nenhum desenho estipulado pela artista, a ordem e a posição das quatro palavras devem ser definidas por quem monta o trabalho.[6] Os verbos “pensas, achas e gosto” foram extraídos do soneto “Spinoza”, de Machado de Assis, e o verbo “pode” foi acrescentado pela artista.

“Momento anterior ao signo”[7]

  • Uma série de trabalhos da artista desmonta os signos, para esmiuçá-los e investigá-los como ação e matéria. É assim nos CARIMBOS, realizados entre 1977 e 1978. Os gestos que criam os signos da arte – linhas, rabiscos, pinceladas e manchas – estão reproduzidos em carimbos, convertidos em máquina. Ao mesmo tempo, esses elementos não criam nada, apenas se repetem um após o outro, preenchendo papéis e livros com o mesmo elemento, de modo burocrático e automatizado.
  • As GRAVURAS ROSAS, de 2002, são apenas gesto e cor. Uma única placa de metal foi riscada incessantemente até ficar quase completamente fechada pela trama das linhas. A placa foi entintada por diferentes tons de rosa para gerar as gravuras, mas de uma impressão para a outra, um tom de rosa contaminou o outro, gerando uma infinidade de rosas, e tornando cada gravura única. Essas gravuras foram feitas como estudos para HINO À BANDEIRA,[8] também de 2002. Na instalação, lençóis de diferentes tons de rosa criam uma massa de cor no chão. Para que eles não voem com o vento, precisam ser regados constantemente. Molhados eles intensificam suas cores, tornam-se carne e pele.
  • Em ESCUTA[9] o trabalho também é pele e superfície, mas é também estratégia de visibilidade e ocultamento. O trabalho foi realizado pela primeira vez em 2001 para um projeto de televisão que revelava o ateliê do artista. Carmela propôs, então, que em vez de exibir seu ateliê, exibiria uma nova obra sendo realizada, e cobriu todo o ateliê com papel kraft. Nada mais podia ser visto, mas em compensação criou-se um novo ambiente, banhado de luz âmbar, novas texturas e com o cheiro característico do papel. Aquela pele de kraft que cobria a sala acabava convertendo-a em caverna, ou estômago, ocultava a arquitetura rígida, borrava as linhas e definições duras do espaço.
  • A instalação realizada em 1992 para a Capela do Morumbi[10] segue o mesmo princípio; uma ação repetitiva produz a forma final da obra. Nesse caso não há espaço a ser coberto, e não há forma definida, apenas diversos materiais fragmentados, amassados e empilhados uns sobre os outros formando 70 peças singulares, todas iguais e, ao mesmo tempo, todas diferentes. Suspensas no espaço, essas pilhas de destroços se alinham em um retângulo que rebate a planta da Capela. Lado a lado em sete filas, declinam uma após a outra em 10 patamares até o altar.

“A obra é uma máquina”[11]

  • A cidade, sempre presente na obra de Carmela, por vezes empresta seus elementos aos trabalhos. O COMEDOR DE LUZ, realizado entre 1999 e 2000, é um ser indefinido de formas antropomórficas, tem seu corpo desenhado por uma estrutura de ferro e lâmpadas florescentes. Caído de canto no chão, parece ter engolido a cidade e agora agoniza, engasgado por ela, convertido nela.
  • US CARA FUGIU CORRENDO, realizada entre 2000 e 2001, é um neon que transcreve uma pichação de rua encontrada na cidade para o museu.[12] Desloca a grafia das ruas para o espaço interno, convertido em material aparentemente mais sofisticado, mas que na verdade, é o mesmo luminoso banal usado na cidade. A grafia-desenho apressada, em movimento, se mantêm, mas o fluxo agora está no pulsar da luz do neon, não mais na cidade.
  • ARTE À MÃO ARMADA, de 2009, que empresta seu título para a exposição na Chácara Lane, é um lambe-lambe concebido para uma intervenção em um caixa eletrônico situado no meio da Praça Clementino Procópio, em Campina Grande, Paraíba. O caixa eletrônico recebia um projeto de intervenções de artistas.[13] A obra concebida por Carmela alerta para o roubo do espaço da praça pelo caixa eletrônico, ao mesmo tempo em que rouba espaço do caixa eletrônico para existir. ARTE À MÃO ARMADA[14] foi a última intervenção no caixa eletrônico. Após a instalação da obra o cilindro foi removido da praça.
  • O espaço interno avança para a cidade, e a cidade invade o espaço interno em EU SOU DOLORES, de 2002.[15] A estrutura de ferro com lâmpadas tubulares vermelhas invade e estoura o espaço. O “EU” fica de fora, o “DOLORES” para dentro, dividido entre o “Eu” anônimo que ocupa a cidade, como tantos outros, e o “Eu” privado, indivíduo na escala interna, que transita entre esses dois mundos. Carregando a identidade para a cidade, e trazendo a cidade em si quando volta. EU SOU DOLORES é também grito de identidade para a cidade, na velocidade e intensidade das luzes vermelhas que desenham o trânsito.

“Ser em trânsito”[16]

  • A massa que ocupa a cidade é a engrenagem que a mantém funcionando; todos têm uma função ou, pelo menos, deveriam ter. Em FIGURANTES, placas como as de rua apresentam as figuras listadas por Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São os arrivistas, vagabundos, donos de bordéis, batedores de carteiras entre outros. Lado a lado, “toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para o outro”[17] está estampada em placas de ruas. Colocam em evidência a engrenagem anônima não oficializada pela sociedade que move a cidade.
  • Para a exposição na Chácara Lane Carmela armou uma nova máquina. ESCADA-ESCOLA é uma escada em estrutura metálica de linhas e curvas industriais, que rompe a barreira que impede o trânsito das crianças da escola vizinha à Chácara, propondo uma relação mais proveitosa entre escola e museu, com um desvio na lógica de uso engessado dos espaços. É mais uma vez a artista saindo do espaço expositivo, esbarrando nos limites físicos do museu e se voltando para o lugar que mais lhe provoca que é o fora, a cidade.

A ESCADA-ESCOLA foi realizada para burlar limites e criar trânsito entre os espaços da escola e do museu. O trânsito seguirá estabelecido, nem escola nem museu querem mais inviabilizar a passagem. O fluxo de um espaço ao outro, antes engessado, agora está garantido. A função primordial intervenção foi conquistada.
A obra de Carmela Gross existe no constante exercício de desafiar a lógica estabelecida das coisas, sua função é apontar, problematizar. Se obra é uma máquina, ela certamente é uma arma. Seu fazer é se desafiar, desafiar o outro, desafiar a arte, desafiar a cidade. ARTE À MÃO ARMADA.

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[1] “Gigantesca cartilha da artista no mundo moderno” foi uma expressão usada por Flávio Motta (1923-2016) no primeiro texto sobre a obra de Carmela Gross, feito para acompanhar a exposição no Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo. Escrito em 1977, o texto que parece prever o desenvolvimento da obra da artista nos 40 anos seguintes. Flávio foi tão perspicaz e sensível em seu texto que me pareceu impossível não homenageá-lo aqui. A ideia de cartilha guiou a construção deste texto. Vale lembrar que a definição primeira de cartilha é livro para ensinar a ler. MOTTA, Flávio. “É o B-A-BÁ”. In: Carmela Gross. São Paulo: Gabinete de Artes Gráficas, 1977.
[2] ZANINI, Walter. Vetor B: pintura e desenho. In: Artistas do Brasil na XVI Bienal. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1981, p. 32-33.
[3] Apresentar A NEGRA como escultura parecia uma contradição na proposta curatorial. A escultura estaria presente, mas a dimensão de intervenção na paisagem da cidade e interação com o público não seria possível por questões museológicas. Optou-se então em apresentar na Chácara Lane os registros fotográficos e desenhos preparatórios da obra.
[4] FECHE A PORTA foi idealizada como instalação de dezoito peças para uma individual de Carmela Gross no Centro Cultural São Paulo em 1997, onde ocuparam a sala Tarsila do Amaral. Na Chácara Lane optou-se por expor duas peças, ocupando uma sala simétrica, uma de frente para a outra.
[5] A obra PENSAS, ACHAS, PODE, GOSTO pertence à Coleção de Arte da Cidade de São Paulo, e ingressou na coleção por doação da artista em 2001.
[6] Para a exposição na Chácara Lane foram programadas duas montagens distintas para ressaltar a mobilidade intrínseca ao trabalho. De tempos em tempos a obra era remontada em uma configuração diferente.
[7] BELLUZZO, Ana Maria. Carmela Gross. In: Artistas brasileiros na 20ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1989, p. 59.
[8] A obra foi concebida para a exposição “Matéria-prima”, que aconteceu em 2002, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, Paraná.
[9] ESCUTA ganhou nova versão para a Chácara Lane; a sala da casa que servia de depósito, e ficaria fechada à visitação do público, foi aberta e incorporada à exposição, porém revestida de papel kraft. Muda-se o lugar, mas se mantém a estratégia de visibilidade/ocultamento.
[10] A instalação Sem título realizada em 1992 para a Capela do Morumbi pertence à coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
[11] MAMMÌ, Lorenzo. Instantes e movimentos: Carmela Gross e Iole de Freitas. Revista Estudos Avançados. São Paulo: IEB/USP, vol. 16, nº 44, 2006.
[12] US CARA FUGIU CORRENDO foi concebida para o Projeto Parede do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Como pressuposto do projeto, a obra responde ao espaço do corredor do museu. Na Chácara Lane, a obra responde à arquitetura desenhada por Marta Bogéa, dobra-se para se encaixar na sala.
[13] O projeto de intervenções no caixa eletrônico da Praça Clementino Procópio era chamado de Galeria Cilindro, e foi criado pelo artista Júlio Leite. Funcionou entre 2004 e 2009, e recebeu intervenções de Guto Lacaz, Gil Vicente, Regina Silveira, Vânia Mignone, Paulo Bruscky, Nuno Ramos, Rodrigo Braga, André Komatsu, entre outros artistas.
[14] Se ARTE À MÃO ARMADA era intervenção que assaltava o caixa eletrônico em Campina Grande, na Chácara Lane a obra era arma distribuída para assaltar o mundo. Uma versão em lambe-lambe foi impressa com tiragem de 4.000 unidades e deixada na exposição para o público levar e usar.
[15] EU SOU DOLORES foi concebida para o projeto Arte/Cidade – Zona Leste em 2002, e foi refeita para a exposição da Chácara Lane.
[16] DUARTE, Paulo Sergio. Três passagens em torno de uma instalação. In: Carmela Gross. São Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003.
[17] MARX, Karl. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.91.

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Publicado em:
Carmela Gross: Arte à mão armada. Textos de Douglas de Freitas e Carmela Gross. São Paulo: Museu de Arte da Cidade – Chácara Lane, 2017 / Rio de Janeiro: Endora Arte Produções, 2017. Catálogo de exposição.

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