Jacopo Crivelli Visconti
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Num texto de 1993, em que analisa a obra de Carmela Gross até aquele momento, Aracy Amaral, uma das críticas brasileiras mais precisas e diretas, afirma que “o artista vale por sua trajetória”. Se essa consideração é pertinente, de maneira geral, para qualquer artista, ela sem dúvida o é ainda mais para alguém como Carmela, e mais ainda, cabe dizer, hoje, quase vinte e cinco anos depois de ter sido feita, à luz de tudo que ela produziu, ensinou, escreveu e fez, ao longo dos anos.
A exposição na Kunsthalle Bratislava, apesar de sintética, permite apontar para alguns elementos recorrentes nessa “trajetória”, que podem servir como introdução à poética da artista para um público que se depara por primeira vez com seu trabalho. Se uma exposição composta por uma instalação e um vídeo não pode ser mais que indicativa de uma carreira que cobre já mais de quatro décadas, e de uma obra que inclui pinturas, esculturas, desenhos, instalações e vídeos, além de uma intensa atividade como professora e formadora de artistas e pesquisadores, é fascinante notar como, no trabalho de Carmela, tudo se relaciona de maneira horizontal, quase rizomática, e praticamente qualquer trabalho pode funcionar como ponto de partida para abordar questões centrais na sua produção.
Desde o início, no cerne do trabalho de Carmela está o desenho. Pode parecer uma afirmação quase contraditória, considerando a escala frequentemente “urbana” (ia usar a palavra “monumental”, mas ela seria equivocada e desviante) do seu trabalho, sua presença física, suas conotações políticas, suas bases rigidamente conceituais. Todos âmbitos, isto é, que a princípio afastam a sua prática da mais convencional, de ateliê, onde o artista solitário, em silêncio, desenha. Mas o desenho é, mesmo assim, o ponto de partida da grande maioria de seus trabalhos: “ele participa, ele conduz, ele é o núcleo inicial de qualquer trabalho que eu vá fazer em outro meio”. A maneira como o desenho se faz presente no trabalho final, por outro lado, pode ser mais ou menos evidente, sem seguir uma estratégia única ou reconhecível: de certa maneira, poder-se-ia até afirmar que essa constante transformação estilística e processual é o que melhor define a prática de Carmela ao longo dos anos.
Numa obra fundamental do início da sua carreira, por exemplo (CARIMBOS, 1978), a operação consistia na subversão da liberdade implícita no gesto artístico primigênio, o rabisco ou mancha quase instintivos, ao transpô-lo num carimbo que o repete mecanicamente: a artista substitui “o gesto sensível e artesanal pela carimbada mecânica, num golpe serial. Arte fabricada”.
Vários anos depois, em 2005, ao projetar CASCATA, uma escadaria de concreto à margem do rio Guaíba, em Porto Alegre, portanto um projeto urbano, permanente e concebido para passar quase desapercebido, pelo menos como trabalho artístico, Carmela volta ao desenho: “a borda dos degraus deverá ser de ferro, aço CORTEN ou outro material a ser pesquisado, para definir claramente as linhas do desenho”, escreve na descrição do projeto.
Em O FOTÓGRAFO, de certa maneira, essas duas maneiras de abordar o desenho estão presentes: por um lado, as lâmpadas fluorescentes constituem a unidade básica do desenho, ancoram o trabalho todo à dimensão de um traço quase infantil, esquemático, elementar; por outro, como nos Carimbos, esse gesto singelo, mesmo mantendo sua espontaneidade, é transformado e subvertido ao tornar-se mecânico, neste caso até industrial, com sua proliferação de cabos, transformadores, reatores, energia…
A profusão de cabos e outros elementos funcionais, aliás, é bastante relevante na economia do trabalho, porque permite situar O FOTÓGRAFO no conjunto de obras da Carmela que se colocam, direta ou indiretamente, numa relação osmótica com a cidade. Algumas obras, em geral de grandes dimensões, como a própria CASCATA, ou o letreiro luminoso HOTEL, concebido para a 25a Bienal de São Paulo (2002), relacionam-se com a cidade pela escala e pela linguagem direta, sendo frequentemente abertas à participação ou interação do público.
A NEGRA, por exemplo (1997), apesar de quase intangível pela maneira como as suas camadas de tule a tornam etérea, é, nas palavras da artista, “um objeto-montagem em ferro e tule de nylon preto, armado sobre rodas, que possibilita o seu deslocamento ao longo da avenida, no asfalto; penso-o também como objeto-imagem, que se mistura ao movimento da rua, dos carros, dos sons e ruídos, das luzes dos edifícios, das lojas, dos anúncios; é ainda objeto-desejo, que contracena com a cidade mutante dos transeuntes – atravessar, voltear, passear, ir e vir, retornar”.
Mas a relação com o universo urbano não se reduz a uma questão de escala e localização: várias outras obras tomam a cidade, e mais especificamente a cidade latino-americana, com suas vísceras permanentemente expostas (seus cabos, seus encanamentos, seus andaimes, seus bueiros defeituosos….) como matéria prima direta e explícita, mesmo quando concebidas para o ambiente teoricamente asséptico de um museu ou uma galeria. É o que demonstrava, premonitória e peremptoriamente, o conjunto de trabalhos expostos na X Bienal de São Paulo, formado por A CARGA, PRESUNTO, A PEDRA e BARRIL (todos 1969), todos eles criados a partir de materiais brutos e apropriados na cidade (colchões, lona de caminhão, barris, palha, plástico), e que aludem diretamente à pobreza das periferias, e ainda, nesse caso, à violência do estado (o barril, especificamente, era usado com frequência como aparelho de tortura).
Mas o trabalho que ilustra de maneira mais poética e sutil a ligação umbilical, e inquestionavelmente política, do dentro e fora, do aberto e do fechado, do local protegido e do perigo das ruas, é também um dos mais simples da Carmela, a todos os efeitos um trabalho menor, mas por isso mesmo paradigmático (“o artista vale por sua trajetória”, mas a trajetória é feita também de pausas e desvios): 2 BURACOS (2012), uma intervenção na fachada da galeria Vermelho, que consiste, tautologicamente, no que o título declara: dois buracos abertos na fachada da galeria, tornando visível e quase tangível a osmose com a cidade que define todo seu trabalho. À luz dessas considerações, valerá a pena voltar a olhar para O FOTÓGRAFO do lado de fora da Kunsthalle, no meio dos carros, se possível numa noite fria e talvez brumosa, sentindo no rosto uma brisa leve, para perceber como a energia que o alimenta é, sem mais, a da própria cidade, e o trabalho em si, nas palavras da artista, “um signo urbano”.
LUZ DEL FUEGO (2012), o vídeo que acompanha O FOTÓGRAFO em sua passagem por Bratislava, foi realizado a partir de fotos de jornal de conflitos políticos, confrontos de rua e acidentes em vários lugares do mundo. Se o vídeo não está entre os recursos mais frequentemente utilizados por Carmela, esse trabalho é representativo de um modus operandi bastante recorrente na obra dela, que utiliza a justaposição de palavras, nomes ou outros elementos. De certa maneira, desde os CARIMBOS a ideia de uma repetição quase mecânica é presente no trabalho dela, mas aqui temos antes o recurso à serialidade, a construção de uma mensagem a partir da soma de todos os elementos e das mínimas variações entre eles, que levam o espectador a entender a obra em sua totalidade.
É o que acontece, por exemplo, em FIGURANTES (2015), em que placas metálicas inspiradas nas de rua apresentam “batedores de carteira, ex-presidiários, vigaristas, rufiões” e outros personagens já elencados por Marx no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852), e que são, também, personagens omnipresentes nas cidades contemporâneas, figurantes de uma história que, como o próprio Marx afirma no início do texto, se repete como farsa. A presença da palavra na obra de Carmela, mais e mais recorrente a partir dos anos 2000, é indício da sua grande familiaridade com o universo da escrita, seja na sua dimensão mais imediata e efêmera (os jornais de LUZ DEL FUEGO, mas também as escritas e a fala de pichadores em US CARA FUGIU CORRENDO, 2000), seja na mais sedimentada da filosofia de Marx, ou da poesia de Machado de Assis (PENSAS, ACHAS, PODE, GOSTO, 1996), entre outros.
O FOTÓGRAFO não foi inspirado diretamente por nenhuma referência literária, mas anos depois de tê-lo instalado por primeira vez, Carmela descobriu um trecho do clássico de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902), que parece descrever exatamente a posição da figura representada na peça: “O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus, -um soldado descansava. Descansava… havia três meses”. Talvez se trate apenas de uma coincidência, mas não deixa de ser fascinante pensar que, no universo de Carmela Gross, onde tudo está em constante transformação e reelaboração, e obras de hoje complementam e iluminam as de outros momentos da sua trajetória, seja possível até que a inspiração por uma obra apareça anos depois dela ter sido realizada.
Publicado em:
LAB: 2014-2017. Bratislava: Slovenské centrum vizuálnych umení, Kunsthalle Bratislava, 2017, p. 219-220.