Agnaldo Farias
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Graças a Carmela Gross, o público que durante este segundo semestre visitar o terceiro andar da Galeria Olido irá encontrá-lo ocupado pela palavra AURORA. Um lindo nome de mulher, hoje inexplicavelmente em desuso, talvez porque associado a coisas antigas e ingênuas, como a marchinha do mesmo nome que Mario Lago consagrou no carnaval de 41, ou como as moças que vestiam suas melhores roupas, pintavam seus lábios com cores vivas e, ávidas de ilusão, freqüentavam as concorridas sessões dos grandes cinemas do centro de São Paulo, como por exemplo, as do Cine Olido, reconhecidamente um dos seus pontos mais chiques. Mas AURORA é também um dos substantivos com os quais se designa o amanhecer. Sem o tom orvalhado, que o til garante ao segundo “a” de manhã, AURORA possui uma sonoridade aberta e reverberante, mas que se contrai na sílaba do meio, à maneira do sol que, antes de romper na linha do horizonte, se faz anunciar por sua luminosidade.
E não se trata de força de expressão dizer que a sala estará habitada por AURORA. O público a encontrará enorme, atravessando diagonalmente o espaço, engenhosamente escrita numa caligrafia dura e volátil de lâmpadas fluorescentes, uma sucessão de garatujas róseas das quais pendem a cabeleira de fios brancos por onde flui a energia que as alimenta. Um corpo luminoso a ocupar o ambiente, tingindo sua penumbra de rosa e a derramar-se pelas grandes janelas da sala sobre os transeuntes que, incautos e inconscientes de tanta beleza, transitarão durante todos os meses da primavera, pelas calçadas da São João, esquina com Dom José de Barros e do Largo do Paissandu.
AURORA é um exercício radical de poesia, uma demontração do que pode um poeta, como Carmela Gross, que, ao invés do espaço bidimensional do papel, toma para si a volumetria do espaço ambiente. Se a palavra poética é aquela dotada de espessura, a palavra que não se curva às demandas da comunicação imediata, oferecendo, em lugar disso, por força de sua carne ampliada, como neste caso, outros sentidos, o que dizer de uma palavra que assume a nossa dimensão física, para atravessar uma sala como essa da Galeria Olido, interditando-a quase por completo? Como nos demonstra a artista, basta uma única palavra, desde que revisitada sob um ângulo original, re-escrita em relação à arquitetura ou ao próprio espaço da cidade, para que ela se renove por completo, para que passe a verter por novos significados, inaugurando mundos e dias novos.
Publicado em:
FARIAS, Agnaldo. “AURORA”. In: São Paulo das Mil e Uma Faces. São Paulo: Galeria Olido, 2004.