Marta Bogéa
[english]
TRAÇADOS
Eu te vejo sair por aí/ Te avisei que a cidade era um vão…[1]
É a lona de caminhão, a tenda, o abrigo, a carga, o canteiro de obras. Não só recolher fragmentos formais dessas situações, mas fazer com que o próprio objeto fosse construído com esses elementos da rua. Lembro-me de quando fui procurar uma firma que pudesse executar meus objetos de lona. A mesma lona com que se cobrem caminhões de carga ou que os trabalhadores usam para construir seus abrigos temporários nos consertos das ruas. Foi perto do gasômetro. Entrei num grande galpão de estruturas de madeira e piso de terra batida. Era uma oficina de costura. Algumas máquinas antigas e não mais que cinco homens confeccionavam uma lona de circo. Entusiasmada comecei a descrever o que seria então o PRESUNTO (1968): costura, cortes, dimensões…[2]
A cidade pulsa nos trabalhos de Carmela Gross. Uma presença que está engendrada nas obras, não exatamente em suas formas, mas perpassando sua materialidade e produção, e na sempre criteriosa e precisa implantação dos trabalhos no espaço.
De certo modo, há um saber sobre a cidade que emerge dos trabalhos. Sem didatismo ou citação. De onde vem essa presença não evidente da natureza que habita as cidades?
…Os letreiros a te colorir / Embaraçam a minha visão…
EU SOU DOLORES (2002) se inscreve entre a pele da arquitetura e da cidade. Atravessa o vão, onde antes se instalava uma janela, deixando o “eu” da obra sobre o abismo da rua. Entrevisto por fora, o trabalho se insinua adentrando o edifício sem se limitar à sua escala interior. É objeto exterior, carrega a escala de um letreiro de fachada, mas se põe entre fora e dentro, tensionando e alterando tanto a leitura do edifício como o campo estanque em relação à cidade, transbordando a experiência do interior da sala através do vão que devolve a cidade. Dentro “sou dolores” é antes de tudo um campo de luz, tinge de vermelho a sala com uma espécie de luz matérica. Conector, “ponte” que define a presença das margens – cidade/ edifício – ao se instalar.
Edifício e cidade como um só campo espacial, borda ocupada que aponta para seus extremos, trânsito entre os sentidos de um dentro/fora que redefinem a experiência. Revela uma significativa liberdade com a experiência dos espaços, sejam urbanos, da cidade, sejam espaços interiores, abrigados pela opacidade dos espaços edificados. Reencantados aqui pelos domínios da luz.
EU SOU DOLORES é a luz vermelha que transcreve as terras baixas da enorme cidade no edifíicio ancorado no Belenzinho.
Traço de união, ou quem sabe, disjunção entre o pessoal e o plural, o de dentro travestido no de fora, o menor no maior possível.
Letras-vagões feitas de metal e solda, vidro e gás incandescente, enfileiradas como um trem de 24 metros, que invade a sala fazendo estourar as paredes.
Corpo presente, ser de luz, horizonte concreto de paralelas rasantes, íngrimes. Exterioridade interna que se projeta minúscula nos olhos vermelhos de quem por aí passar.[3]
EU SOU DOLORES faz parte de um grupo de trabalhos com outros nomes de mulheres, em letras luminosas, que se inserem inesperadamente em espaços interiores.
DOLORES (2002), AURORA (2003), LUZIA (2004)… mulheres feitas da matéria luz carregadas de intensidade cromática, rosa, vermelho, verde… Anúncio de seus humores? Estável, ordenada, oscilante, fixadas cada qual com um suporte que singulariza delicadamente suas estruturas. Luzia surge cambaleante a partir de fios que sustentam sua luz verde; Dolores, rigorosamente ordenada pela treliça metálica, estruturada em vermelho intenso; Aurora é quase um manuscrito, delineado em suscessivos traços movediços que amparam o fugidio nome em cor-de-rosa.
São letreiros subjetivados pela presença feminina em nomes tão próprios, instalados no interior do espaço. Janelas das quais se pode reconhecer, tão fora de escala, suas presenças cromáticas a transbordar para a cidade.
O código comum de textos luminosos que endereçam os edifícios na cidade e permitem reconhecer usos, aqui, torna-se subjetividade. Reposiciona-se, borrando a fronteira do espaço exterior/interior, objetivo/subjetivo.
A palavra construindo campos de luz foi muitas vezes matéria para Carmela. Um de seus surpreendentes espaços US CARA FUGIU CORRENDO (2000-2001), neon que transcreve um grafite de rua na parede do museu (Museu de Arte Moderna, São Paulo), tinge de vermelho cor e luz fazendo vibrar o corredor passagem como campo íntegro, subvertendo o nome próprio do Projeto (“Projeto Parede”).
Carmela vive espaços e nesse sentido coerentemente os preenche na sua plenitude volumétrica. Um preenchimento não apenas matérico, feito não por quem os contempla bidimensionalmente, mas os ocupa.
No MAM, a frase pichada transformada em neon, carregada para o interior/passagem de um museu, ganha outro contorno, outra força, deslocada da origem, nem mais pichação, nem mais neons, dois códigos urbanos bastante desgastados surgem aqui embaralhados, e trazem, de quebra, a rua para dentro do espaço museográfico.
Há outros, como a instalação SUL (2006), posicionada no teto do espaço: fios pendurados construindo um campo entre o céu e o chão do lugar no qual se encontram os reatores das lâmpadas. Deixados propositalmente à mostra, mas criteriosamente ordenados.
E, talvez um dos mais ardilosos, HOTEL, que ocupou a fachada do Pavilhão da Bienal, em 2002 (25ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo).[4] Construído com uma estrutura de 3 metros por 3,5 metros e lâmpadas fluorescentes, HOTEL ocorre como letreiro. Todavia, em vez de “informar”, desloca o sentido e o uso do espaço. Opera na brecha de um “desendereçamento”: não seria aqui a locação de espaços uma forte questão? A obra desloca o nome em relação ao uso oficial do espaço, embaralha os sentidos, atuando a partir de uma materialidade arquitetônica e urbana recorrente que, em geral,
endereça lugares.
Ação tão pertinente quanto improvável no uso dos códigos urbanos. Demonstra uma intimidade que vai além da simples observação das cidades. A pista surge nas conversas com Carmela, na esteira de suas andanças que mapeiam uma certa São Paulo.
Aqui uma significativa constatação: a cidade que Carmela habita é uma cidade experienciada. Cartografada pela busca de seus variados artífices. A cada material distinto, a cada forma de fazer, a artista procura parceiros específicos. É assim que nasce sua intimidade com a cidade, uma cidade vivida e não idealizada, uma cidade que se inscreve a partir do ofício, na procura dos parceiros, nos endereços inusitados, nas lógicas tão singulares que vão da loja de tules à fundição de alumínio. Surgem assim endereços tão naturais quanto improváveis: Neon Tochi, em Guarulhos; Fundição Marieta de Alumínio, em Osasco; Lonas, no Parque Novo Mundo…
Na procura dos artífices de cada matéria, Carmela constrói uma cartografia do desejo do trabalho, mapeia a cidade. Aprende com a cidade sua estranha lógica, para reinaugurar com uma lógica tão singular uma outra cidade.
Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa
Um mapa de Berlim
Com uma legenda
Pontos azuis designariam as ruas onde morei
Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas
Triângulos marrons, os túmulos
Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim
E linhas pretas redesenhariam os caminhos
No Zoológico ou no Tiergarten
Que percorri conversando com as garotas
E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores
Onde repensava as semanas berlinenses
E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos
Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento.[5]
A cidade ocupada por Carmela é, de certo modo, uma cidade benjaminiana, experienciada, e sua intimidade com ela se dá imbricada em uma cartografia inscrita pelas deambulações ocorridas na esteira do desejo e das lógicas dos trabalhos.
MOVIMENTOS
…Tua sombra a se multiplicar…
As obras de Carmela se constituem a partir de uma variedade significativa de materiais. Seu canteiro de obras é rico, partilha convívios e práticas, aprende no fazer do outro e subverte as lógicas sem impor uma matéria inédita, pois o ineditismo está na maneira de organizar o que existe. Não precisa inventar uma lâmpada, usa a que existe, acata suas limitações e com surpreendente liberdade constitui a diferença a partir do dado real.
Ela sabe, como poucos, usufruir do saber do outro sem dissolvê-lo em um princípio de autoria ensimesmada. Constrói com o outro, articulando seu domínio ao de quem domina a matéria que a atrai, constituindo possibilidades não previstas e, nesta medida, reinforma o mundo por uma poética resultante através das práticas que tangencia. Nesse sentido, lembra muito Lina Bo Bardi, arquiteta para quem o fazer era parte constitutiva da descoberta da alteridade que a encantava e de que partilhava, sendo um dos exemplos mais emblemáticos e conhecidos o SESC Pompeia.[6]
Não persegue o desenho de autor, reconhece no desenho o gesto de origem que significativamente transformado resultará no trabalho. Os BURACOS (1994), por exemplo, resultam da ampliação sucessiva de um primeiro desenho, feito à mão em ordinária caneta BIC, no momento de uma reunião acerca da implantação do projeto. Uma sucessão de ampliações e a definição das dimensões estabelecem o desenho final a ser escavado.
Há aqui uma bela contradição, a artista de uma rigorosa precisão acata a imprecisão inevitável do mundo. Reconhece que a feitura dos buracos levará inevitavelmente, pela natureza artesanal desta escavação, à adulteração da geometria indicada.
Sem fazer disto uma bandeira, os modos de fazer são, talvez, seu traço mais recorrente. Muda a matéria, mudam os parceiros, mudam as escalas, mantêm-se as formas de enfrentar o mundo e de reinventá-lo. Os elementos já estão lá mas, ao redefinir suas possibilidades, reinventa a forma de olhar. Um olhar que serenamente reconhece a variedade do mundo sem buscar aplainá-lo em idealizações.
…Na galeria, cada clarão / É como um dia depois de outro dia / Abrindo um salão…
CORPO DE IDEIAS[7] (1981) resulta da sobreposição de xerox em papel vegetal das páginas de uma enciclopédia visual reproduzidas em cópia heliográfica. Espessa tessitura de imagens que redefine outros registros.
Resgata do espaço ordinário um campo extraordinário. Reconhece beleza e poesia em pequenas coisas cotidianas. Às vezes em registros técnicos, que ordenam o mundo sem registrar seu encanto.
Carmela, reencanta o mundo a partir dos registros e recorrências, transformando-os por uma singular poética que os fazem se transformar.
É capaz, por exemplo, de propor um PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU (1980-1981), série de 33 desenhos, a lápis e nanquim, constituídos a partir do código dos desenhos técnicos de arquitetura e astronomia. Esse céu projetado, tanto possível porque aderido ao real, quanto improvável porque impossível (será mesmo?), guarda um dos mais doces encantos, aquilo que tem de humano na desconcertante potência de acreditar poder construir. E, quando na esteira do sonho, a fulgurante beleza que há em, de fato, poder construir, como estes paradoxalmente potentes e delicados mundos construídos.
Carmela constrói mundos, porque os habita.
Para mim, só é possível “pensar arte” como máquina social e urbana, que se produz nesse meio e a ele se destina, em suas trocas ativas e múltiplas; daí meu interesse maior pelas cidades de fronteira, do que pela geografia, uma vez que o trabalho a ser realizado deverá “pertencer” à fronteira em questão.
Não consigo “pensar arte à distância”; preciso da experiência concreta, direta, corporal, visual, com o espaço que “receberá” a obra, ou “se transformará” na obra suas vizinhanças, entornos, sombras, que serão componentes indissociáveis dela.[8]
FRONTEIRA, FONTE, FOZ (2001), trabalho para uma praça na cidade de Laguna, em Santa Catarina, é um dos projetos urbanos de Carmela. Constrói no pavimento em mosaico português uma sombra, um vestígio de homem em linhas circulares. No corpo a corpo com o pedestre apenas uma vibração de ondas, na visão aérea das sacadas vizinhas, o vulto se anuncia. Dois tempos de uma imagem que, antes de tudo, retoma um certo modo de fazer tão peculiar aos nossos passeios públicos, pavimento recorrente nas nossas cidades reinventado por Burle Marx, no que veio a se tornar uma significativa referência em nosso imaginário urbano: o calçadão de Copacabana, lugar de idas e vindas, território de alegres deambulações à beira-mar.
A praça de Laguna sintetiza esse poderoso imaginário articulado a outro, dos corpos, da subjetividade, dos vultos das artes plásticas (O grito de Munch?), da vibração das respirações.
O mundo proposto por Carmela aparece assim, geometricamente preciso, ardilosamente fugidio e subjetivo, encantadoramente humano. Guarda a sofisticação adensada de tantos circuitos simbólicos e eruditos estrategicamente aderido ao que ordinariamente se encontra colado na pele/experiência de qualquer um.
E desse improvável mundo proposto por ela será possível emergir das mãos de uma bordadeira um delicado traçado em tons variáveis de vermelho do mapa da rede hídrica registrado pelo geógrafo Aziz Ab’Saber. Fios d’água a redefinir possibilidades.[9]
…Catando a poesia / Que entornas no chão…
Pelo reconhecimento da alteridade, Carmela põe o mundo em movimento. E o movimento em Carmela surge como uma dança.
Seja na forma como, a partir da materialidade das obras, propõe o movimento do corpo, como em EM VÃO (1999), no qual é preciso bordejar o espaço, ou nas HÉLICES (H1, H6, MAX, todas de 1993), onde o gesto explicitado é necessário para ativar a obra.
Mas talvez o movimento mais intrigante seja aquele no qual ela delicadamente põe em deslocamento as coisas.
E é a matéria quem dança no espaço. ILHAS (1995), EM VÃO, ALAGADOS (2000) e FRONTEIRA, FONTE, FOZ guardam entre si a semelhança de um gesto que reconhece um território e o redefine. Nas dobradiças de ALAGADOS, no elástico de ILHAS e EM VÃO, no mosaico de FRONTEIRA, FONTE, FOZ surgem rastros de territórios, memória de experiência de espaço, alguns deles transformados no espaço mesmo. Alguns deles a exigir corpos que deambulam para compreender o traçado da obra.
Ou desestabiliza o espaço por uma suave perturbação, como em EXPANSIVO (1988), no qual um campo fugidio de espelhos faz “retrair” a parede imóvel. Distingue-se das outras ocupações da mesma natureza pois faz a matéria retrair o espaço, estilhaços que fazem vibrar o plano inicialmente estável.
Nesse sentido, aproxima-se do HOTEL BALSA (2003). Espécie de tablado sobre o qual o visitante é convidado a se instalar, e que percorre o espaço em lento movimento ladeado por um plano de luz e outro de espelho, no qual está escrito hotel. Jogo de reflexos, luzes, movimentos. Suave movimento que dissolve as certezas do mundo.
Mas é em A NEGRA (1997) que Carmela faz da cidade um salão e a dança, de fato, se anuncia enquanto “a negra” espera alguém que a tire para dançar na Paulista.
Da cidade cartografada vemos então surgir traçados tão improváveis quanto delicadamente (im)possíveis a serem apreendidos num campo simultaneamente expansivo e subjetivo que Carmela nos convida a também habitar.
*
[1] A música As Vitrines, de Chico Buarque, surge em uma das conversas com Carmela, em seu ateliê, durante o manuseio dos projetos, em um texto de aula dada por ela, encontrado entre os papéis da obra A NEGRA (1997). A letra na íntegra: “Eu te vejo sair por aí/ Te avisei que a cidade era um vão/ Dá tua mão/ Olha pra mim/ Não faz assim/ Não vai lá não/ Os letreiros a te colorir/ Embaraçam a minha visão/ Eu te vi suspirar de aflição/ E sair da sessão, frouxa de rir/ Já te vejo brincando, gostando de ser/ Tua sombra a se multiplicar/ Nos teus olhos também posso ver/ As vitrines te vendo passar/ Na galeria, cada clarão/ É como um dia depois de outro dia/ Abrindo um salão/ Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia/ Catando a poesia/ Que entornas no chão”.
[2] Carmela GROSS – 5 Depoimentos ao Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira, São Paulo, 22/2/1978.
[3] Carmela GROSS – Projeto para Eu sou Dolores, junho de 1999, inédito.
[4] HOTEL, 2002.
[5] Walter BENJAMIN – “Fragmento” (1932), apud Willi BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna, EDUSP, São Paulo, 1994, p. 313.
[6] Ver: Marcelo Carvalho FERRAZ – Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1996 e vídeo documentário dirigido por Aurélio Michilis Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1993.
[7] Em Corpo de ideias, a operação é de reconhecimento, a partir da descoberta da enciclopédia como matriz, e de sobreposição.
[8] Carmela GROSS, 1999, inédito.
[9] Vale registrar uma pequena história contada por Carmela acerca desta obra: a sua definição se deu pelo bordado, pela escolha de seu traçado, do ponto e da cor – vermelho – sendo que a posição de cada tom foi definido pela bordadeira. Confirma-se assim a serenidade com que Carmela estrutura seu trabalho, acatando a presença bem-vinda do gesto do artesão com quem partilha a feitura da obra.
Publicado em:
Carmela Gross: um corpo de ideias. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. Catálogo de exposição.
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