por Rosa Iavelberg, Aline Caetano e Priscilla Sacchettin
Rosa Iavelberg: Carmela, pode-se chamar CARNE de obra efêmera?
Não se trata de uma obra efêmera, mas de uma obra-na-circulação, com os desdobramentos que isto implica – transitividade, impermanência, transformações espaciais e temporais… Os acontecimentos reais da vida da cidade são componentes dinâmicos da obra, ou melhor, obra e fluxo urbano se pertencem e se misturam.
Rosa Iavelberg: E o processo de trabalho?
O modo de trabalho para a realização do ônibus-carne comporta um processo coletivo. Há uma concepção, uma direção, talvez um roteiro, ou o que chamo de projeto-conceito. E neste caso, projeto não deve ser entendido no sentido estrito de um projeto formal que, antes da obra, planeja todas as operações, o encadeamento das etapas executivas, e que determina o desenho, as linhas construtivas, as técnicas do fazer. Ao contrário, aqui, o projeto é só uma faísca, um vetor que conduz as escolhas pelas variáveis dos materiais, pela experimentação, pelo improviso… pelo refazer… As dinâmicas produtivas passam certamente por descobertas individuais e por trocas e decisões coletivas. A obra se faz mediante a organização das experiências sensoriais e cognitivas numa totalidade.
Rosa Iavelberg: Você já teve outras experiências nas quais se apresentaram numa só articulação a curadoria, a preocupação com a arte-educação, e mais o seu trabalho?
Quando se pode aplicar a um acontecimento plástico-visual o título de “obra-de- arte”, ele certamente contém todas estas instâncias. Porque, antes de tudo, o artista é o seu “primeiro curador” e, isto implica um distanciamento crítico e uma experiência histórica. E depois, necessariamente, a obra de arte se desdobra em trocas múltiplas com o outro, que podem também ser compreendidas como educação, aprendizado, conhecimento, difusão, circulação, interação… Como projeto institucional, a proposta arte-ônibus-educação funciona com uma espécie de química reveladora do processo artístico.
Rosa Iavelberg: O projeto Arte Passageira é uma idéia que nasce no Educativo Maria Antonia, mas CARNE foi você que inventou. Então eu queria que você falasse um pouco do ponto de partida desta poética, que envolveu muita gente.
CARNE é um título, um nome próprio. Está no inicio, no meio e no fim da obra- ônibus. No início, porque é o vetor projetivo que se funde como conceito ao veículo ônibus. No meio, porque conduz as operações plásticas, os processos de feitura e a configuração do todo. E no final, porque é uma chave para a apreensão e percepção da obra, um dos seus sentidos ou parte da sua significação.
Para conectar a idéia de carne ao ônibus foi preciso cobrir o veículo-máquina com muitas camadas de vermelho, e forrar todas as suas partes também de matéria vermelha. Mesmo com todas as peculiaridades de um ônibus, o veículo virou uma enorme “massa esponjosa vermelha”, na qual dentro e fora, transparência e opacidade, porta, janela, capota, chão, teto e banco constituem uma unidade. No letreiro luminoso, indicativo do seu destino, se lê a palavra CARNE.
Carne quer dizer tecido muscular animal, alimento, coisa-à-venda; e ainda natureza animal com física do homem. No ônibus CARNE, este homem é um passageiro para o qual o mundo lá fora, e ele mesmo, são só vermelhidão. Carne viva.
Priscilla Sacchettin: Fale mais do trabalho coletivo, sobre ter de passar o projeto para pessoas que vão trabalhar com você.
Aline, Carolina, Monica, Maria – é um privilégio poder trabalhar com estas meninas maravilhosas – uma banda, um balé, no qual as marcas das individualidades aparecem, com as escolhas particulares, as preferências, os pequenos gestos… as marcas digitais. Mas o desenho do espetáculo é maior e envolve uma potência que é coletiva. É importante lembrar que tudo se passa numa enorme garagem de ônibus e, que também há os meninos: João – o homem do vídeo, dois ou três funileiros, alguns mecânicos e pintores, gente olhando, muitos telefones celulares…
Priscilla Sacchettin: Então é uma direção que não exclui o acaso?
Certamente, o acaso, o risco, o imponderável, o desacerto, a cooperação, a simpatia, a crítica, o exercício da liberdade…A arte é a experiência de mobilização destas forças criadoras, individuais e coletivas
Rosa Iavelberg: Mas por isso é importante narrar essa experiência, os materiais, o vídeo que foi realizado. Porque daí, além de experiência individual, pode virar uma experiência social, por vários textos, por várias narrativas, essa idéia do vídeo, do material de apoio didático, da permanência. Acho que é um acontecimento mais do que um projeto.
É! E tira o foco do artista como eminência que é capaz de plasmar o mundo. Não. Não tem isto. O artista é um dos componentes deste processo, cujo sentido se encadeia em relações muito mais amplas. Aqui, o artista não é uma personalidade, destacada do resto da sociedade, e que de repente consegue fazer uma coisa extraordinária… Nada disto.
Priscilla Sacchettin: Como você pensa o desenho, e o desenho especificamente neste projeto?
No sentido corrente, na sua materialidade, o desenho pode ser entendido como um traço, um risco, um rabisco sobre uma superfície. Coisa de lápis e papel. No processo de feitura, como domínio da mão e do olhar, o desenho é expressão e projeto, ou melhor, uma tensão entre os dois termos – risco pensado pela mão e tateado pelo pensamento. Mas gosto de entendê-lo também como coisa de faca, lâmina, pincel, cola, agulha ou pedra, que roça ou rasga outras superfícies e deixa marcas. Quer dizer, trata-se da mesma oposição entre intenção e gesto, mas, agora, com outras implicações, que são da ordem da escala, da amplitude, dos deslocamentos, dos suportes, da armação… São muitas variáveis e com muitas operações complexas porque não possibilitam de imediato uma apreensão e um domínio do todo. Cada etapa se soma a muitas outras e envolve o trabalho de muitos. Uma dinâmica de trocas, de escolhas, de ir-e-vir, de convergências, de ajustes e manobras… No ônibus, os primeiros desenhos, pequenos e sintéticos, correspondem à idéia de projeto, lápis e papel. Já o trabalho efetivo no ônibus – colagem, pintura, dobra e corte – corresponde ao desenho grande, trabalho coletivo…
Aline Caetano: Houve uma mudança no projeto CARNE. O seu desenho inicial era diferente. Era outra a relação das cores, bem mais mesclada, eram tiras com muita diferença de cor, como uma textura. Você poderia falar um pouco desta mudança?
É aquilo de que falávamos antes. Claro, que quando você está trabalhando no pequeno, você domina o desenho por inteiro, com um rabisco só. Quando você chega na escala do ônibus, o objeto gigante, que tem três metros de altura e doze metros de comprimento, o suporte mudou inteiramente. Não é mais a folha do papel, nem é o computador, com seus comandos… e então, você descobre que as manchas muito pequenas não vão funcionar. Você muda de escala. E mudar de escala não significa só ampliar aquilo que antes era pequeno. Significa repensar numa nova escala, em novas dimensões. Foi assim que a gente errou todo o começo… Quando começamos a fazer os bancos, ficamos contentes e entusiasmadas com as pequenas manchas, e estava tudo bem. Depois, quando a gente começou a trabalhar lá dentro com as grandes superfícies, as paredes, o chão, o teto, aquilo nos ensinou que os bancos estavam errados e tivemos que refazê-los. Então, poder ir e voltar e, rever aquilo que estava feito, é maravilhoso…
Rosa Iavelberg é professora da Faculdade de Educação e Diretora do Centro Universitário Maria Antonia.
Aline Caetano é aluna da Faculdade de Educação e estagiária do Educativo MariAntonia.
Priscilla Saschettin é mestranda do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
publicado no catálogo Carmela Gross: CARNE
projeto educativo Arte-Passageira
Centro Universitário Mariantonia, USP, São Paulo, 2006.