Edson Luiz André de Sousa
Publicado no catálogo da exposição
Carmela Gross: Roda Gigante. Porto Alegre: Farol Santander, 2019
[english]
“− a nossa solidão convulsa
é a nossa sombra no chão
nossa margem de erro:
a sobra das coisas…”
Manoel Ricardo de Lima[1]
Cumulus congestus é uma das formas de nuvens classificadas no estágio baixo, que estão a 2 quilômetros da superfície. Essas nuvens são descritas como formações com bordas protuberantes no topo e considerável desenvolvimento vertical, indicando forte ascensão. Sua existência revela camadas profundas de instabilidade. Carmela Gross esboça em sua exposição RODA GIGANTE um pensamento sobre ascensão e queda, erupções vulcânicas da linguagem invadindo espaços esvaziados de palavra, cartografando inúmeras zonas de instabilidade. Suas estratégias artísticas entram como vapores inquietos pelas frestas da maquinaria da linguagem, dissolvendo imagens- clichês, interpelando o signo, desvelando estratégias de poder, confrontando a forma em um movimento que poderíamos nomear como contra imagem. Essa afinidade com as nuvens vem de longa data, pois, já em 1967, Carmela Gross elaborou o trabalho NUVENS, peças de madeira recortadas e pintadas com esmalte sintético azul. Como evoca Ana Maria Beluzzo, “envia nuvens ao chão, trazendo o impalpável ao alcance das mãos”.[2] Se por um lado um pensamento nuvem indica lugares transitórios, frágeis e etéreos, por outro, esse mesmo espírito volátil indica movimento, força e desfaz uma ideia de mundo que volta sempre ao mesmo lugar. Fixar lugares sempre esteve em pauta na lógica do poder, instaurando realidades e tentando congelar os lugares de significação. Assim, o sentido que precisamos buscar será sempre aquele por vir, parcial, enigmático, incompleto. Nesse ponto, Carmela Gross se aproxima muito do Hamlet de William Shakespeare quando ele interpela Polônio em sua subserviência à palavra do Outro. Hamlet, apontando para as nuvens, diz a Polônio: “Estás vendo aquela nuvem ali, quase em forma de camelo?”. Polônio reage afirmando tratar-se efetivamente de um camelo. Mas, em seguida, Hamlet continua: “Pois me parece mais um esquilo”. Polônio o segue sempre servilmente: “É, tem a corcova de um esquilo”. Hamlet o provoca ainda mais: “Ou será uma baleia?”.[3] Hamlet desvela, assim, um modo de relação parasita à linguagem e que lembra o espírito da servidão voluntária tão magistralmente dissecada por Etienne de la Boétie. O seu ato de quebrar espelhos funciona como uma interpretação analítica, pois faz vacilar sentidos estabelecidos. Carmela Gross põe suas nuvens em movimento e sua exposição nos obriga a percorrê-la como os treze passantes em seu vídeo de animação (2016), no qual cada um busca seu ponto de equilíbrio em uma gramática singular que sustente uma travessia no mundo. O tropeço de uma das figuras, que se desmonta no espaço, nos indica um caminho possível. Estamos sempre tropeçando na linguagem e é a partir dessa queda que poderemos recolher os vapores de novas imagens. Precisamos, cada vez mais, de imagens que recuperem espaços de enigma, que nos coloquem diante de novas perguntas, acionando assim territórios de esperança. Circunscrever nossas escuridões nos obriga a buscar a direção das raízes que nos sustentam não para reverenciá-las como heranças imutáveis, mas para podermos também abrir novos espaços de sustentação. Ernst Bloch inaugura sua clássica trilogia Princípio Esperança, dedicada à reflexão sobre o lugar do pensamento utópico, com a afirmação contundente de que “pensar é transpor”.[4] Sabemos bem que essas transposições não se fazem sem perturbação, pois, como evoca o poeta Rainer Maria Rilke, “a arte nada fez senão mostrar-nos a confusão na qual quase sempre nos encontramos. Ela nos inquietou, em vez de nos fazer silenciosos e calmos”.[5]
Na instalação RODA GIGANTE, que dá nome à exposição, o espectador é instigado, com seu olhar, a traçar linhas verticais no espaço, buscando nas extremidades das cordas os pontos de amarração. As linhas se tensionam com a força magnética dos objetos fora de lugar, em suas histórias de deriva e abandono e que parecem puxar as colunas para o chão. São muitas as narrativas condensadas nessa trama discursiva que tenta nos contar uma história dos restos, das margens, dos esquecimentos. O espaço recortado por fios desenha um mapa de linhas e me faz lembrar a definição de espaço feita por Milton Santos quando propõe pensar o espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações.[6] Carmela Gross aciona, portanto, na visualidade dessas formas, gestos armazenados de esquecimento. Mas, para a artista, não é suficiente apontar esses lugares de abandono. Ela rasga o espaço para que possamos ver os figurantes que nem sempre aparecem. Temos, assim, um imenso memorial, uma espécie de melodia do mundo por meio de um inventário de objetos. Cada objeto instaura uma narrativa possível, um horizonte de imagens no espírito da consciência utópica blochiana que buscava enxergar bem longe, mas, no fundo, apenas para atravessar a escuridão próxima do instante que acabou de ser vivido.[7]
Para poder ver os figurantes que surgem lentamente no plano de fundo das cenas do mundo é preciso escutar o ruído dos bastidores, recusar a fascinação imediata da primeira imagem que se mostra e aguardar o tempo do que está no segundo plano. Assim surgem os FIGURANTES, um a um, que a artista recita visualmente com seu neon luminoso na cor vermelha, letra a letra. Lemos, dessa forma, o “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, de Karl Marx, como o letreiro de um filme em que a história é feita pelos coadjuvantes: nulos, vagabundos, desertores, gatunos, trapaceiros, cafetões, catadores, trapeiros, traficantes, mendigos… Podemos imaginar essa linha contínua de palavras como uma roda gigante horizontal, a qual coloca a pergunta sobre o que é uma leitura. Como poder ler a partir daquilo que está na sombra? Rilke, em um fragmento de seu texto O Testamento, chama a atenção, na pintura de Jan Van Eyck “Madona de Lucca”, para duas pequenas maçãs quase invisíveis no parapeito de uma janela e diz que gostaria de poder ser não uma das maçãs, mas sua “modesta sombra”.[8] Carmela Gross busca circunscrever essas sombras e recolocá-las em cena.
Assim, o trabalho LUZ DEL FUEGO II nos apresenta os incêndios que ainda queimam e dos quais não nos aproximamos o suficiente para identificar a origem desse fogo, razão pela qual continuarão queimando. Testemunhamos atônitos inúmeras imagens de violência de Estado, tentando silenciar tantas revoltas legitimas. O vídeo recupera fotos de jornais de fevereiro de 2012 a novembro de 2016; conflitos na Líbia, na Síria, no Egito, na Palestina, em Israel, no México, bem como em outros países. Traz, também, confrontos nas ruas de Atenas, Roma, Santiago e em tantas outras, e ainda manifestações em inúmeras cidades brasileiras em junho de 2013. Cada imagem conta uma história que me faz lembrar Jimmy Hendrix em sua canção de 1968 “Up from the skies”, em que evoca o “cheiro do mundo que queimou”.[9] Mais do que nunca, precisamos retornar para perto dessas cinzas, buscar lê-las, para minimamente podermos responder à provocação proposta por Jack London: “Como alguém poderia encontrar as palavras para descrever um pesadelo?”.[10] A exposição Roda Gigante, de Carmela Gross, nos deixa algumas pistas.
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[1] LIMA, Manoel Ricardo. Geografia Aérea. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2014.
[2] BELLUZO, Ana Maria. Carmela Gross. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 10.
[3] SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 77.
[4] BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2005, p. 14.
[5] RILKE, Rainer Maria. A melodia das coisas. Tradução de Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2011, p. 125.
[6] SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Editora Edusp, 2002, p. 21.
[7] BLOCH, Ernst. Op. cit., p. 23.
[8] RILKE, Rainer Maria. O testamento. Tradução de Tercio Redondo. São Paulo: Editora Globo, 2009, p. 139.
[9] Agradeço a Carlo Pianta a lembrança dessa música no seminário que realizou na Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), em abril de 2019.
[10] LONDON, Jack. O pagão. Rio de Janeiro: Editora Dantes, 2000, p. 12.