André Severo
Publicado no catálogo da exposição
Carmela Gross: Roda Gigante. Porto Alegre: Farol Santander, 2019
“Eis uma ideia penosa: que, para além de um certo ponto preciso do tempo, a história teria deixado de ser real. Sem se dar conta disso, a totalidade do gênero humano ter-se-ia, de repente, afastado da realidade. Desde então, tudo o que se teria passado, teria deixado de ser verdadeiro, mas não poderíamos aperceber-nos disso. A nossa tarefa e o nosso dever seriam agora descobrir esse ponto, e, na medida em que não nos fosse possível fazê-lo, teríamos de perseverar na destruição atual.”
Elias Canetti
Meios que desenvolvemos para conseguir alguma coisa; forma de obtenção de algo; habilidade, astucia, esperteza, contorno das dificuldades: estratégia. Objeto é toda coisa material que pode ser percebida pelos sentidos; é a causa, o motivo, o sentimento vinculado a uma ação; é o assunto, a matéria de uma área de conhecimento; é desígnio, fim, motivo, pretexto, propósito; e é também mercadoria, artigo, bem de consumo, coisa. Em As estratégias fatais, Jean Baudrillard pondera sobre um problema que ainda hoje, talvez mais do que nunca, se coloca ao homem contemporâneo: o de saber como se relacionar com o mundo, com o espaço, com os objetos, com as coisas que nos rodeiam e que estão em permanente mutação. Sentimo-nos reféns dos objetos, obesos em relação ao espaço, deslocados em um mundo com o qual a nossa relação não pode mais ser pensada em termos de radicalidade absoluta.
Questionando-se sobre a existência de estratégias que nos possibilitariam um melhor relacionamento com essa realidade, que parece instaurar um processo de libertação – de corte do cordão umbilical – que a liga ao ser humano, Baudrillard levanta uma hipótese: e se, cansadas da dialética do sentido, as coisas, os objetos, houvessem encontrado um meio para lhe escapar? Na ponderação do sociólogo, filósofo, fotógrafo e poeta francês (que, em sua obra, sempre nos convidou a mantermos acesa a chama do inconformismo – motor que move o homem – em busca de um porvir que não viesse a nos assombrar), esse meio estaria na possibilidade tropológica de os objetos, as coisas proliferarem até o infinito, na de se potencializarem, na de se sobreporem à sua essência numa escalada até os extremos, numa obscenidade que lhes serviria, doravante, de finalidade imanente e de razão insensata.
Tomada como uma metáfora de ampliação de nossa perspectiva a respeito dos efeitos da fragmentação do sujeito no mundo e da necessidade de construção de novas estratégias para a convivência com as diferenças, acredito que a hipótese de Baudrillard nos sugere, no mínimo, um meio para tentarmos contornar a evidência de que, ainda atualmente, a aparente racionalidade de nossas ações segue invadindo todas as coisas. É fato que, mesmo em uma época de transição – em que estamos beirando a singularidade (quando todas as transformações do último milhão de anos estão para ser superadas pelas mudanças que ocorrerão nos próximos quinze minutos) –, ainda vemos constantemente instalar-se em nosso cotidiano o desejo de sermos cada vez mais exatos, de cada vez mais enxergarmos um sentido objetivo para nossas motivações. Ao que parece, mesmo em um contexto em que a inteligência artificial está para superar a humana (e talvez até mesmo tornar-se indistinguível desta última), continuamos tentando racionalizar a vida, torná-la cada vez mais eficaz e especializada. Porém, ao mesmo tempo, vemos crescer em nós uma certa incapacidade de podermos imaginar qual rumo seguiremos, qual direção tomaremos quando tivermos tudo entendido, examinado, organizado, classificado, transformado em padrões e normas de comportamento – empresa que, não obstante, se mostra cada vez mais impraticável.
Temos consciência de que nossa visão de nós mesmos, do outro, das coisas e do mundo em que estamos inscritos muda a cada dia; e de que mesmo os contextos daquilo o que imediatamente nos rodeia (e que acreditamos serem instâncias estáveis) estão em permanente transformação. É também, para nós, pacífico que procuramos estar o mais abertos possível para novas experiências, para maneiras distintas de pensar e de relacionarmo-nos com a realidade – todavia, o simples fato de vivermos a transição e, ainda assim, nos envolvermos preferencialmente com o lado racional de nossas atividades faz com que pareçamos estar longe de alcançarmos nossos propósitos ou nossas metas existenciais mais profundas. Quero dizer com isso que não deixa de ser espantoso que, mesmo em uma época em que as chamadas lógicas heterodoxas (como a lógica difusa, a lógica intuicionista ou mesmo a lógica paraconsistente do matemático brasileiro Newton da Costa) desmontam alguns pilares da lógica clássica – como o princípio da contradição, por exemplo –, ainda estamos desacostumados a um raciocínio não padronizado e parece que, para cada pensamento um pouco mais aberto que possamos desenvolver, existe sempre um pensamento objetivo como contraponto; para cada inclinação livre que temos, uma inclinação funcional que se lhe opõe. Mas será que somos realmente capazes, ou melhor, será que existe, efetivamente, a necessidade de continuarmos avaliando as coisas apenas de forma prática, de formar juízo, de encontrarmos sempre algum sentido objetivo naquilo que observamos, experimentamos ou realizamos?
Tomando por base essas indagações e também a imagem da instalação artística que dá o contexto imediato para esta redação, talvez fosse o caso de pensarmos: e se esses objetos, essas coisas – que, na conjectura de Baudrillard, poderiam se proliferar até o infinito –, não fossem quaisquer objetos? Ou melhor, e se as coisas que estariam já cansadas da dialética do sentido (e que, por força mesmo de sua obsolescência, já seriam as que estariam habilitadas para lhe escapar) não fossem os objetos a que nos apegamos ao longo da vida, não fossem as coisas a que atribuímos valor, mas sim os restos, as sobras de tudo aquilo o que efetivamente damos atenção no decurso mais ordinário de nosso percurso existencial? Tal conjectura, além da ponderação mais óbvia sobre aquilo que esses objetos poderiam revelar sobre nós mesmos e sobre nosso agir no mundo, nada obstante, já me conduz também a repetir aqui algumas indagações que me fiz em contextos similares de especulação – a saber: em que se basearia a convicção, o dever ou a necessidade de nosso agir moral se não levássemos sempre em conta nossos apelos a um absoluto? Quais seriam os resultados imediatos de nosso envolvimento direto com as coisas, os pensamentos e as situações que habitualmente colocamos à margem de nossas experiências? Como sabermos o que hoje pode, de fato, ser entendido como racional e compreensível? Qual a utilidade desta ou daquela ação? Qual o resultado de nosso embate criativo com as coisas e com o mundo (e o que sobraria deste encontro)? E, finalmente, considerando-se aí a circunstância imediata de elaboração deste escrito, qual a relação entre as proposições do artista, o local de apresentação da arte e o verdadeiro envolvimento (se é que ele é almejado) com seu espectador ou participante?
Sem resposta imediata a nenhuma dessas questões (que, creio, poderiam, todas elas, ser substituídas apenas por uma indagação mais abrangente sobre o que fundaria, realmente, a dignidade e a determinação humanas senão o fato de que cada ser humano é uma pessoa aberta para algo mais alto e maior ou, no mínimo, diferente do que ela própria é), justifico que elas são relacionadas aqui apenas para pontuar, mais uma vez, que – mesmo em um contexto antropossocial em que se considera que um novo conceito de ser humano já está para surgir – toda intuição, toda ação não funcional, todo pensamento nômade e toda lógica não ortodoxa continuam encontrando no intelecto motivos para serem rejeitados ou condenados (assim como seus opostos mais estruturados, para serem defendidos e exaltados). Além disso, não parece configurar, para nós, nenhuma novidade o fato de que, geralmente, nem percebemos nada disso, pois mudamos tão constantemente, tão rapidamente, que, muitas vezes, nem chegamos a completar um movimento despretensioso, um pensamento impreciso, um pressentimento dúbio antes de nos envolvermos diretamente com seu oposto – deixando de lado as experiências que poderíamos ter com o que se encontra entre os polos desse raciocínio. Nenhuma ilusão ou condenação aqui. Penso, contudo, que talvez seja justamente entre esses equivalentes, no intervalo desses aspectos opostos, que oscila o dinamismo de nosso pensamento; ou melhor, nossa capacidade de abandonarmos os preconceitos do senso comum e buscarmos uma nova compreensão de tudo aquilo que nos rodeia.
Dito de maneira equivalente: é certo que nunca poderemos almejar total clareza quanto às questões mais importantes relacionadas aos nossos aspectos vitais, essenciais e existenciais. Porém meu ponto aqui é se não seria o caso de, neste momento, nos questionarmos não apenas sobre as consequências de nossas ações racionais, sobre os efeitos de nossas atividades funcionais e sobre o que admitimos e alcançamos de uma situação prática, mas sim sobre o sobejo, o excesso, o que fica depois que retiramos o que aparentemente consideramos necessário ou principal de uma ação ou situação, enfim, sobre aquilo que é por nós rejeitado durante nosso embate ordinário com o mundo? Sendo para nós, de qualquer modo, impossível viver apenas de maneira exata (e considerando-se que ainda não podemos ter certeza de que a iminência do advento da singularidade – que, em termos evolutivos, considera que o atual estagio de desenvolvimento do ser humano está longe de ser o último ou o definitivo – irá unir o humano ao maquínico), talvez seja finalmente o momento (quiçá, inclusive, nossa última chance) de nos preocuparmos com os dados iminentes, de potencializarmos nossa criatividade e nossa intuição, de nos entregarmos às experiências com a arte e acionarmos nossa inteligência espiritual.
Tal seria, acredito, o efeito mental do desvio para aquilo o que é externo ao centro; todavia, para além das complementações (que seriam, efetivamente, necessárias) para a sustentação destes argumentos, creio que vale dizer, ainda, que tenho ciência das correntes epistemológicas que postulam que o universo não é, efetivamente, dialético; das filosofias que sustentam que estamos, todos, fadados não ao equilíbrio, mas aos extremos; das teorias que asseveram que estamos condenados ao antagonismo radical e não é reconciliação ou é síntese. Entretanto, como contraponto, posso ponderar que estes me parecem ser princípios que se exprimem, justamente, não na forma extática, mas sim na estática do objeto puro, do concêntrico e não do excêntrico, dos princípios ortodoxos e das coisas que, encerradas em uma polaridade interna, já não se relacionam com o que é outro, diferente. Dito isso, penso que a possibilidade de ajuste, se é que ela existe, talvez esteja, como suspeitava Baudrillard (ainda que a sua via de especulação também o conduzisse, invariavelmente, aos extremos), não nas polaridades e nem nas sínteses, mas na obtenção de formas sutis de radicalização das qualidades secretas para combater o deletério por meio da potencia do superlativo e da união excêntrica das causas e dos efeitos: não opor o visível ao oculto – procurar o segredo; não contrapor o fixo ao móvel – buscar a metamorfose; não antagonizar o belo ao feio – procurar entender o informe; não distinguir o verdadeiro do falso – aceitar a ilusão e perceber a iminência.
Conforme acredito, há uma diferença radical entre esse caminho (que, em última instância, nada mais é do que a senda da vivência com a arte e a vereda da criatividade e da intuição) e os métodos objetivantes da lógica ortodoxa, das epistemologias proloquiais ou mesmo dos adágios da tecnociência; todavia a estratégia excêntrica, aqui, seria simplesmente a de anuirmos que o caminho rumo ao que não se experimenta, ao que corre ao largo de nossas expectativas primevas, ainda configura os campos mais férteis para plantarmos as sementes de um raciocínio não ortodoxo, de uma lógica sensível, de uma ação intuitiva, de um pensamento-ação que não apenas aceite e obedeça às normas de funcionalidade ou produtividade e que – nada obstante – nos aproxime de uma experiência que não precise, para ter validade ou ganhar visibilidade, se mostrar rigidamente orientada numa ou noutra direção.
“Da utopia, que no horizonte da filosofia da história constituía um horizonte meta- histórico necessário – uma ulterioridade metatemporal –, resta, ao contrário, algo que insiste profundamente no tempo, na própria estrutura do tempo, e é aquele presente que carregamos por dentro. Não é esse o presente que morre, que se apaga porque é engolido pelo passado ou que cessa de ser porque já é futuro. Utopia, nesse sentido, é uma experiência íntima da temporalidade e, portanto, não implica colocarmo-nos do lado de fora ou além, não evoca uma transcendência, mas sim um estabelecer-se deste lado, no interior do mundo.”
Ferruccio Masini
Tempo atual; o que acontece ou tem seu início no presente; o que habitou ou teve seu começo na mesma época; algo ou alguém que fez parte de um mesmo período de tempo; algo ou alguém que se inscreve, indiscutivelmente, no presente: contemporâneo. Conforme pondera Giorgio Agamben em seu ensaio O que é o contemporâneo?, o poeta, o artista, deve manter fixo o olhar no seu tempo. Questionando-se sobre o que efetivamente enxergaria quem vá o seu tempo – quiçá o sorriso demente do seu próprio século? –, o filosofo italiano propõe algo que ele chama de uma segunda definição da contemporaneidade: contemporâneo seria aquele que manteria fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Tendo em vista que, para Agamben, o contemporâneo que se pode entrever na temporalidade do presente é sempre retorno – não cessa de se repetir – e, portanto, como a poesia e a arte, nunca funda uma origem; e que, nada obstante, para esse autor todos os tempos são (para quem deles experimenta contemporaneidade) obscuros, contemporâneo seria somente aquele que tem coragem de encarar essa obscuridade, aquele que é capaz de olhar para o não vivido no que é vivido, aquele que consegue entrever um limiar inapreensível entre um ainda não e um não mais, e compreender o presente como sendo, ao mesmo tempo, imemorial e pré-histórico.
Sem intentar ou ter ao que imputar embargo imediato, começo a ponderar – a partir de um entendimento particular (ou, quiçá mais precisamente, de um mau entendimento) das postulações desse pensador (cuja produção se concentra nas relações entre a filosofia, a literatura, a poesia e a política, mas que, ao mesmo tempo, esforça- -se para manter suas conjecturas fundadas no apontamento de uma ligeira diferença, um mínimo deslocamento das coisas, entre o mundo profano e o mundo messiânico) – que contemporâneo não seria, definitivamente, aquele que força a entrada pela porta de um novo e eterno mundo – o mundo pós-histórico –, mas sim aquele que, independentemente das ferramentas de que dispõe ou da forma de que se utiliza para inscrever seu pensamento no real, consegue manter as coisas exatamente (ou quase exatamente) como elas são – só que um pouco fora de lugar. Ou seja, contemporâneo seria, nessa ótica, aquele que persegue uma sensação vertiginosa de verdade nas fraturas, nas cisões do tempo; aquele que ultrapassa a forma estética na forma extática da metamorfose incondicional; aquele que mergulha nos temas e os arranca às suas causas objetivas para os entregar ao poder dos efeitos desencadeadores; aquele que, enfim, consegue ir contra a aceleração dos canais e dos circuitos, aquele que atua na lentidão – não a lentidão nostálgica do espírito, mas a imobilidade em potencia de distensão –, no excêntrico, no mal escrito, no súbito absoluto ou, simplesmente, naquilo que Baudrillard chamaria de radicalização das qualidades secretas.
Contemporâneo seria, assim, efetivamente, o poeta, o artista que, conforme acredito, é aquele (talvez o único que restou no atual contexto cultural, político e antropossocial em que nos sustentamos) que ainda consegue fazer com que a inércia ou o silencio tornem-se estratégias de ação e comunicação. Contemporâneo seria, pois, aquele que consegue, a partir da verticalidade de sua entrega para a pesquisa e investigação criativas, emular o efeito mental da catástrofe – só que sem a desgraça, sem a calamidade, sem as consequências desastrosas do acontecimento funesto factual. Contemporâneo é, assim, aquele que aceita a consciência errante, a deriva de sentidos, o entrecruzamento de fronteiras; aquele que, contra a transparência geral (e sem fazer acelerar uma sentença de morte e de indiferença), quer intimar as coisas a reencontrarem seu sentido. Contemporâneo é, ainda, aquele que não busca apagar o real em benefício do imaginário, mas aquele que almeja a fração parafactual da realidade; aquele que percebe que no contexto atual já não há mais transcendência e que aquilo que restou dela é não mais do que a superfície imanente do desenrolar das operações e da comunicação; aquele que entende que o presente que a contemporaneidade pode conceber tem, desde já, o horizonte cindido (e que é exatamente no ponto de quebra desse horizonte em que nos equilibramos). Contemporâneo é, finalmente e sem sombra de dúvidas, o artista que enfrenta o real e, sem descaracterizá-lo, infere uma sutil mudança; contemporâneo é o poeta que consegue fazer parar as coisas – antes que cheguem ao fim – e mantê-las assim, em distinção de iminência, no instante de suspensão da própria aparição.
Sem que seja preciso detalhar mais pontos de reconhecimento, justifico que tais postulações se ressalvam agora, pois, conforme acredito, o que a investigação artística parece poder, em última instância, nos oferecer é, antes, uma ocasião para se refletir sobre a experiência que vivemos ante um pensamento materializado em um lugar e um momento determinados. No fim das contas, é isso o que torna contemporâneo um artista – e não estou me referindo aqui, obviamente, a qualquer artista (pois não pretendo colocar foco, neste momento, sobre artistas que, mesmo com um trabalho consolidado pelo sistema de circulação vigente, parecem estar em estado de anomia; e menos ainda àqueles que, para manter suas trajetórias em evidência , simplesmente acatam os acordos da gramática visual contemporânea), mas sim àqueles artistas que fazem de seu movimento no campo de investigação com a arte uma cruzada de ponderação existencial, política, cultural, social e humana. Estou, em suma, tentando refletir sobre aquele artista que procura, a seu modo, desamarrar o sentido da funcionalidade que normalmente aplicamos às nossas experiências e expectativas habituais; aquele que entende, efetivamente, a necessidade de os objetos abandonarem a dialética dos sentidos (e que, por isso mesmo, muitas vezes, somente se envolve com espaços, objetos ou situações quando percebe que, por alguma razão, esse espaço, esse objeto, essa situação está condenada a não ser algo, a sobrar – quando percebe conjunturas que foram colocadas à margem da nossa experiência ou atenção cotidianas). E aí há, novamente, um ponto crucial, pois, conforme acredito, para esse artista (o poeta, o contemporâneo), são as realidades e as circunstâncias cotidianas, despertadas por uma forte intuição que dificilmente se engana, que acendem sua curiosidade – o que não é notado, o que é percebido com desinteresse, o desaprovado, o rejeitado, o desprezado, as degradações de determinadas situações que se podem revelar, para esse artista, subitamente, como os terrenos mais propícios para uma investigação particular sobre o escoar da nossa existência.
Mas, também aí, há um segredo, pois, a meu ver, a fluidez do processo criativo é a essência de uma experiência de operação no real; uma operação que assume com facilidade a variedade de condições inerentes ao mundo, alterando-as, minimamente, justamente pela inter-relação de circunstâncias que acompanha cada fato ou situação. Nesse sentido, o artista que liga sua imaginação criadora a contextos urbanos, por exemplo, e se utiliza das vinculações recíprocas entre arte e vida como potenciais elementos criadores de uma reflexão conceitual (de linguagem plástica caracterizada por um grande domínio espacial, mas também, muitas vezes, por uma construção intencionalmente reduzida em nível estrutural) produz algo que não nasce apenas de uma crença na forma, mas de uma consequência metódica que trata de descobrir elementos determinantes para a vida e na própria vida, e de fixá-los em manifestações mundanas e em reflexões existenciais determinadas por um envolvimento total no desdobramento de seu pensamento criativo. Esse artista, que normalmente não parece acreditar em um espaço próprio para a arte, ou, pelo menos, que não parece acreditar em um espaço onde a arte se apresente desligada da vida, da experiência humana e mesmo da situação cotidiana, aposta, sim, em uma reflexão arejada e livre de vícios processuais e institucionais. Por consequência, o desenvolvimento consecutivo de seu trabalho plástico não é aquele que se dá aos saltos, pois se trata de alguém que trabalha, invariavelmente, sem rede de segurança, que prefere as transições e que se movimenta sempre por territórios diversos, revogando, tornando sem efeito, anulando constantemente tudo o que já fez e empregando outra coisa em seu lugar – daí por que suas indagações, com frequência, ecoam para além do campo da arte e circulam com total liberdade por outros terrenos especulativos.
Com isso em perspectiva, poderíamos ponderar também que os elementos essenciais na investigação plástica de qualquer artista deveriam ser, pois, a mudança de contextos e procedimentos e o abandono das certezas instituídas – elementos esses que poderão adquirir um sentido especial em seu processo criativo, principalmente por favorecerem o desligamento em relação às situações estabelecidas. Digo isso pois, para mim, qualquer movimento no campo artístico deveria configurar uma instância insigne de experimentação – mas não no sentido de o artista não produzir trabalhos completos ou complexos, pois a completude e a complexidade das investigações artísticas se revelam (ou deveriam se revelar, penso eu), antes de tudo, em um exercício de aproximar-se de determinada experiência, envolver-se nela, percebê-la, vivenciá-la, antes que ela possa ser assimilada completamente. Ou seja, a meu ver, a prática de arte deveria, invariavelmente, ser configurada como uma investigação que não nega seu caráter experimental de embate, confronto e intercâmbio de conhecimento, pois, até onde acredito compreender os fenômenos de elaboração do raciocínio criativo, posso afirmar que o trabalho que não nega seu cunho de experimentação é sempre um trabalho potente – haja vista que possui uma qualidade necessária para o desenvolvimento de qualquer pensamento criativo e reflexivo (seja ele artístico ou não), que é a de não se preocupar em dar destaque para um procedimento ou enfatizar gratuitamente uma poética a não ser no sentido de trazer à tona, de chamar a atenção para uma inquietação, de liberar algo em que o artista acredite ou que ele intua como relevante para potencializar a discussão que propõe.
Sem embargo evidente, justifico que isso também somente se salienta, pois, a meu ver, o que faz das proposições artísticas algo mais do que um ajuntamento de materiais, um simples jogo formal de sedução, é justamente a capacidade do artista de abrir um pensamento, de produzir linguagem e oferecer operações diferenciadas e infinitas de suas indagações. Penso, também, que a própria disponibilidade da arte para se constituir como um espaço de reflexão existencial, um campo de encontro dos questionamentos humanos, já seria suficiente para dar sentido a esse movimento – principalmente por ser, creio, no terreno de reflexão artística onde podemos mais facilmente nos desligar do raciocínio exato, restaurarmos nossa mobilidade de pensamento e nos abrirmos para a impermanência das coisas. Ao discutir, por meio do seu trabalho, as maneiras de apresentação da arte, ao romper o enclausuramento individual, ao ultrapassar os limites das estabilidades identitárias e ao se abrir para a impermanência das coisas, o artista (o contemporâneo) demonstra uma preocupação de que sua investigação (e, consequentemente, sua proposição), sob qualquer forma ou em qualquer lugar que se apresente, não se reduza a um mero jogo formal ou material, mas que se atenha ao dinamismo e é força das trocas humanas, dos encontros objetivos e subjetivos que ampliam a liberdade de nossos pensamentos e dos relacionamentos individuais e consociais que mantemos.
Conforme posso ponderar, o sucesso (ou, quiçá, principalmente a falha) da realização das proposições de um artista que encare a investigação em arte dessa maneira pode demonstrar, inclusive, que a arte definitivamente não exige espaços padronizados de exibição, modelos uniformes de demonstração, ou melhor, ambientes de exclusividade onde os pensamentos artísticos possam ser inseridos e apresentados. O que existe são, no máximo, modos particulares de cada artista interpretar e espacializar os problemas, de incorporá-los e devolvê-los ao mundo como reflexões, possibilidade de comunicação ou reciprocidade de relações. Por meio do envolvimento com as situações rejeitadas pelo pensamento ordinário e por um interesse genuíno em situações pelas quais há definitivamente um desacordo, o artista aprofunda-se nas questões relativas aos modos de apresentação de um pensamento plástico e procura alcançar as razões não ditas que estão por detrás das vivências mundanas. Mantendo o olhar fixo no seu tempo, percebendo dentro da realidade não as luzes, mas a obscuridade, trabalhando com a possibilidade de ir além da imposição de valores em direção ao mistério do questionamento humano ou de nosso verdadeiro embate com o mundo, o artista torna-se, efetivamente, contemporâneo – talvez apenas para nos revelar (ou nos fazer lembrar mais uma vez) a importância de tentarmos, mesmo que eventualmente, nos utilizarmos de estratégias excêntricas para encontrar algo entre as antíteses de nossos pensamentos e assim ampliarmos, como pudermos, nossos horizontes sensíveis e intelectuais.
“Qualquer história, conto, biografia, está inscrita na temporalização da própria presença. No encontro com o outro, que é sempre o encontro com o tempo (mesmo no cone de sombra do sofrimento), o homem se constitui, a cada vez, como autor do próprio texto da vida. Na experiência vivida da própria biografia, torna-se a pôr em jogo as articulações da temporalidade, novas alquimias, durante as quais ou ao findar delas poder. surgir uma história inédita, imprevista, não mais somente uma reconstituição do passado, mas uma história inscrita no devir, que já começa a escrever-se no presente.”
Mauro Maldonato
Não concêntrico; que não se enquadra em padrões; que age de modo estranho ou incomum; que pensa de modo extravagante; que se distancia ou se extravia do centro; que se localiza de modo externo ao centro ou que não possui nem compartilha centralidade. Em uma realidade em que vemos o ritmo da mudança tecnológica ocorrer de forma cada vez mais célere (e causando impactos tão profundos na vida humana), não há como deixar de se pensar que as mutações decisivas dos objetos e do contexto consocial contemporâneo – que, ao que parece, também derivaram de uma tendência para a abstração formal e operacional (dos elementos e das funções) – contribuíram para a sua homogeneização na virada corrente para o virtual. Baudrillard, como vimos, quando pensava sobre o escape das coisas frente à dialética do sentido, sobre a possibilidade de os objetos se potencializarem, se sobreporem à sua essência e proliferarem até o infinito, ponderava que tudo aquilo que foi, um dia, constituído em objeto por um sujeito representa para ele uma ameaça virtual de morte. Ponderava também que o objeto não aceita a sua objetividade forçada mais do que um escravo aceita sua servidão; que o sujeito (que não pode ter mais do que um domínio imaginário, de qualquer modo efêmero, sobre o objeto) não escapará de sua ressurreição e que a única revolução nas coisas não estará, jamais, no seu sucesso dialético, mas em sua potencialização extática.
Trata-se de ponderações, sem dúvida, contundentes (tão contundentes que me esforcei por dar sequência, ao longo de todo este escrito, ao impacto que elas tiveram sobre mim desde a primeira leitura); todavia, pensando com um pouco mais de cuidado sobre essas elucubrações e colocando-as em contraste com a imagem da instalação RODA GIGANTE, de Carmela Gross – motor primevo desta reflexão –, acabou também por me ocorrer (mais correto seria dizer me atravessar) a lembrança de uma outra sentença, elaborada em A subversão do ser, por Mauro Maldonato: “Quem sabe constituir objetos não teme o vazio dos objetos; quem sabe ver formas não teme o informe, nem teme o surgimento do absurdo ou a ocultação dos significados”. Com essa colocação em mente (e pensando novamente sobre o relacionar-se do homem com o mundo, com o espaço e com as coisas que o rodeiam em um estado de permanente mutação), pude perceber, finalmente, que, no balanço derradeiro, a experiência individual de cada um de nós é, ao mesmo tempo, o único sujeito e o único objeto de nosso acontecer. E essa ponderação – que talvez pareça primária para alguns – acabou, outrossim, por me fazer entender (algo que pode soar também um tanto óbvio) que os objetos comuns possuem uma diferença crucial em relação àqueles produzidos no contexto da pesquisa artística – pois, ao contrário dos primeiros (coisas materiais passíveis de serem apreendidas em sua concretude e por sua funcionalidade – ou mesmo pela perda dessa funcionalidade), estes últimos não são (jamais foram e nem poderão algum dia vir a ser), efetivamente, mais do que tropologias.
Da mesma maneira que os vínculos entre as palavras na poesia, o objeto artístico somente existe enquanto potencia; sua finalidade imanente é, para nós, ser hipótese, ser metáfora – e se ele parece existir para além da translação, é somente porque, muitas vezes, consegue exercer um fascínio momentâneo, porque nos deixa vislumbrar, ainda que de relance, no instante iminente de sua desaparição, algo de oculto ou de menos evidente naquilo que somos (ou naquilo que acreditamos ser). Não há como – e nem porque – se negar o quão admirável e espantosa é, para nossa intelecção e para nossos sentidos, a presença tátil dos objetos que percebemos como componentes de um trabalho artístico, a sua iminência, a sua suspensão, a sua cotidianidade – conjunção do súbito, da banalidade da realidade comezinha e da imanência de um outro tempo, de um outro corpo. Todavia, como vimos, ao que se afigura, mesmo dentro da experiência com a arte, talvez não haja para nós nada além de nossa experiência de nós mesmos no mundo. Nenhuma teoria, nenhum dado: apenas a experiência individual (mesmo quando nos convencemos de que ela pode ser compartilhada). Tendo isso em perspectiva, não parece nos restar muito mais além da anuição de que aquilo que intuímos concretamente, das coisas, dos objetos – investidos ou não de conteúdo artístico –, talvez não seja, efetivamente, mais do que uma percepção particular (uma cor, um som, um cheiro, um volume, um peso) que nos coloca em suspensão e gera, em nós, a possibilidade insigne de inscrevermos, nessa singela sensação, uma série interminável de indagações pessoais e ponderações existenciais.
Com efeito, se concordamos que o modo como percebemos o mundo e nos relacionamos com seus fenômenos é, necessariamente, por meio das nossas avaliações das situações em que estamos mergulhados, torna-se evidente que nem a funcionalidade, nem a monumentalidade (tampouco a beleza) seriam essenciais aos objetos que percebemos como arte – essencial seria somente a intimidade fatal que conseguimos desenvolver com as coisas que nos tocam e sobre as quais (ou, a partir das quais) podemos projetar a fascinação do vislumbre do relevo de topologia moebiana em que se inscrevem nosso nascimento e nossa morte. E isso já se aponta, pois acredito que é apenas desse modo, como potencialização extática, que a experiência individual (que, antes de tornar-se percepção, chega até nós sempre em forma de choque com os objetos, colisão com o outro, confusão com a realidade circundante) acaba também por se configurar vivência e conhecimento. Ou seja, é somente a partir do impacto com aquilo (diferença irredutível, ulteridade insuprimível) que tentamos, mesmo que involuntariamente, perpetuar em nosso pensamento e em nossa realidade imediata que reorganizamos a arquitetura estrutural de nossa consciência – e, quiçá, de nossa continua presentificação. Sem contraste, sem conciliação: ao que se afigura, é assim mesmo que as coisas procuram, hoje, de maneira simultânea, sair de si mesmas e negar-se a si mesmas – e, quanto mais notamos esse antagonismo radical, mais percebemos a necessidade de criarmos estratégias excêntricas, que nos proporcionem a obtenção de formas sutis de aproximação das qualidades secretas de nós mesmos e dos objetos.
A partir destas pontuações, e tentando agora voltar o foco para os temas que elegi para conduzir esta redação a seu termo, arriscaria ainda dizer que nossa atitude em relação a um espaço, a um objeto (ou, no caso da instalação que serve como vetor de validação da lógica alotrópica desta redação, a uma série de objetos apresentados sem um espaço conscientemente manipulado), está normalmente determinada pelo contexto em que nos encontramos – e é, talvez por isso, que o valor, ou melhor, o significado de um trabalho de arte como RODA GIGANTE somente possa se revelar no momento mesmo de nosso embate com o resultado final da experiência que nos é proposta. Digo isso pois, nessa instalação, a artista se apoderou de uma grande quantidade de objetos – que tiveram suas funções originais descontinuadas (mas que, nada obstante, ainda carregam suas formas, suas histórias, seus contextos) – e os transportou até uma zona livre (mas não um espaço comum, uma vez que se trata de uma edificação quase centenária, que possui um histórico como instituição financeira e que, hoje, abriga um centro cultural recém-remodelado) para construir com eles reflexões de dimensões artísticas e existenciais profundas. Trata-se de reflexões pessoais, é verdade, mas que, por se darem a partir de objetos descartados e garimpados em lugares destinados a armazenar coisas de qualquer tipo para troca ou comercialização – e por, paradoxalmente, tratarem esses objetos como estruturas plenas –, exemplificam bem não somente a pregnância e a força do que é ambíguo, mas também a imagem tropológica da potencialização extática das coisas que escalam até os extremos, que proliferam ao infinito.
Segundo creio, para que enxerguemos sentido em algo, é preciso que tenhamos uma perspectiva (momento ou ação que ofereça o que quer que seja de extraordinário); e para que haja uma perspectiva, é preciso uma pequena distorção de percepção – um mínimo de ilusão, de desafio ao real, que nos conquiste, que nos seduza, que nos estranhe, que nos revolte –; e é essa, a meu ver, a dimensão realmente estética da criatividade. Não parece haver a que se impor embargo, todavia, em RODA GIGANTE; tudo parece estar, para nossa percepção imediata, efetivamente à superfície (e já não parece haver segredo nessas coisas superficiais). Além disso, o que poderia ser conservado secreto aqui – posto que se trata de uma instalação artística – parece estar sendo forçado cada vez mais para dentro do real. Operação de inversão: pelo que somos impactados, então, se a ilusão mínima parece também ter desaparecido (ou ter sido intencionalmente removida)? Mais uma vez, não há resposta evidente; pois, por paradoxal que se afigure, tudo é metafísico nessa obra – até mesmo sua geometria sonhadora, que não é a do espaço, mas uma geometria mental, a do desenho de labirintos. Ou seja, trata-se de um trabalho que, apesar da concretude de todas as peças que o compõem (inclusive a edificação monumental em que se ancora e onde os objetos se amarram), não se esforça por ser objetivo, mas, ao contrário, força a experiência subjetiva, individual e coletiva, e estimula a indagação existencial e o envolvimento com a paisagem (mais precisamente, com a série interminável de paisagens que não estão lá, mas para aonde cada um daqueles objetos parece apontar), impulsionando o raciocínio desarticulado, o processo de abandono da construção exata de nosso pensamento e da nossa maneira de perceber e interatuar no mundo.
E, de fato, uma das características mais marcantes de uma obra assim é que ela parece não poder ser apreendida na sua totalidade, uma vez que não é apenas o resultado da instalação ou da disposição metódica de uma série de objetos arranjados de um modo determinado em um local especifico – é, sim, uma operação plástica complexa, na qual a artista, como parece ser costume em sua poética, mergulha no sentido obtuso das situações de controle para desestabilizar nossas certezas assentadas e nossos raciocínios exatos. Além disso, nenhuma relação nessa situação semelha ser evidente; ou seja, no resultado final dessa instalação, o impetuoso encontro com o cotidiano gera uma situação de negação do senso óbvio de nossas ações ordinárias. Mesmo o toque da artista, como ato de expressão único, não semelha ter aqui a importância que vemos tantas vezes exaltada na maioria das proposições artísticas – a obra se revela como uma construção intrincada que, no entanto, parece comportar algo interrompido, algo descontinuado e suspenso, algo que se oculta para cada pessoa dentro desse labirinto de cordas e objetos; algo que, para cada pessoa, estará sempre na iminência de ser revelado. Ao eleger uma quantidade incontável (uma vez que os objetos que compõem a instalação não são, efetivamente, somente os objetos que lá estão, mas também todos aqueles que ali poderíamos projetar) de coisas para serem deslocadas, recontextualizadas e compartilhadas, a artista recusou a criação de uma forma única e intransferível de comunicação plástica e visou estatuir um espaço a ser dividido com o outro. Todos aqui são agentes da construção de uma reflexão que procura, na abertura para a alteridade, a extensão das fronteiras de articulação e estruturação de uma linguagem plástica.
Talvez por estar ciente disso, a estratégia (excêntrica) de Carmela Gross foi abandonar qualquer intenção de mero comentário das relações entre as coisas, suas importâncias e significados, e analisar situações de valor semelhante. Aqui, a justaposição simultânea de objetos nos revela que, por meio da ligação entre partes em que não há consenso, podemos alcançar uma liberdade de pensamento baseada na mobilidade da experiência – condição esta que, insisto, pode nos levar para além do nosso conhecimento e de nossas tentativas e expectativas individuais. Conforme acredito, relacionar-se com uma proposta assim é mais do que entender a sobreposição de coisas e contextos ou experimentar o sentimento de acúmulo que o trabalho incita; é, antes, uma abertura tropológica para o desligamento em relação ao ordenado e ao estabelecido, é como repousar sobre a insuficiência e observar a precipitação simultânea de muitas realidades. De resto, em conjectura derradeira, o trabalho demonstra um jogo de contaminação e experimentação e se apresenta como uma estrutura em continua realimentação – pois, em sintonia, esse trabalho parece demonstrar que, mesmo dentro dos limites de nossa experiência cotidiana, de nosso choque ordinário com o mundo e por meio da experiência com a arte, não somos, ainda, capazes de entender, principalmente por tentarmos sempre conduzir nosso pensamento para o exato, os rejeitos de nossas expectativas, os espaços não preenchidos de nossos pensamentos.
Assim, sem muito mais o que acrescentar neste momento, somente espero que fique evidente no final desta excogitação que ela não guarda a intenção sub-reptícia de defender qualquer necessidade, ou vontade, de atacar a objetividade, o encadeamento lógico de ideias; mas, ao contrário, almeja nos ajudar a apostar firmemente no desdobramento de estratégias que nos possibilitem alcançar outros horizontes intelectuais. Isso se justifica e se apresenta relevante no encerramento deste escrito somente para deixar sublinhado, uma vez mais, que defendo aqui – e o que a instalação RODA GIGANTE me parece ajudar a demonstrar – que, nos desvios excêntricos dos pensamentos exatos e das auto certezas estabelecidas, talvez exista ainda a possibilidade de desenvolvermos outras maneiras, modos diferentes de nos relacionarmos com a vida e, talvez, com a arte. Podemos, quem sabe, a partir dessa obra, considerar que possuir uma personalidade espiritual e desenvolver um raciocínio que não seja necessariamente orientado para a objetividade possa revelar-se como possibilidade de entendermos as coisas de maneiras distintas, de acreditarmos nas novas orientações que podem chegar. Por fim, só o que fica é, mais uma vez, a pergunta: sabe-se lá quantas coisas novas enxergaríamos, quantas coisas diferentes se fundamentariam intimamente se desenvolvêssemos, cada um de nós, de maneiras absolutamente particulares, estratégias excêntricas que nos dessem a capacidade, por alguns instantes que seja, de deixarmo-nos persuadir contra nossas crenças, de colocarmos parte de nossa consciência determinadas verdades tidas por nós como absolutas e tentar transformá-las, ampliá-las em novas e abertas convicções?
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