Experiência desejável e desafiadora

Luiz Paulo Baravelli

 

Ao contrário do que se pensa, artistas não são nada invejosos do sucesso dos colegas. Digo isso porque gosto muito da atual exposição da Carmela Gross na Galeria São Paulo e gosto principalmente do modo como ela é e como encara o trabalho. Seria tão bom se aqui houvesse mais bons artistas e especialmente artistas do tipo da Carmela, se é que artistas vêm em tipos. Gostaria que a emulação fosse mais forte e deixasse todo mundo mais elétrico.
Para o artista já formado, gostar do trabalho de um outro é difícil; por um instante é preciso abdicar da própria identidade e se deixar levar por outra visão, outra cabeça. Imagine Mondrian parando um instante com o esquadro e o tira-linhas no ar e pensando: “Esse tal de Van Gogh é bom mesmo… e se ele estiver certo?” Pessoalmente duvido que tenha pensado isso e se pensou nunca disse. Se penso no trabalho da Carmela é impossível deixar de comparar com o meu. Há uma semelhança superficial: formas recortadas, materiais estranhos, um uso semelhante do preto e do branco. No essencial somos muito diferntes. O mundo visível é minha fonte e também meu limite; de certo modo, eu reajo ao mundo enquanto ela age por conta própria – temos os sinais trocados. A maluca simplesmente faz o que lhe dá na telha, com uma desenvoltura de pasmar e isso é incrível. Meu trabalho é mais tímido que o dela (mais belas-artes, se é que sou claro) e fico torcendo aqui de trás: vai, Carmela, dá neles que eu vou depois.
Arte experimental é um pleonasmo – se não é experimental, se não trás à tona uma face nova da consciência, não é arte. Por outro lado, como dizia o Charles Fort, só é novo o que está esquecido. Pensando no Picasso, no Klee, constato que neles cada obra é sempre nova e ao mesmo tempo bate em algo que já vimos antes. Ampliar o alcance da consciência, própria e dos espectadores, sem romper a rede e ser levado para o hospício é a arte do bom artista. O Picasso, malandro como ele só, fazia uma revolução por dia e em seguida vendia resíduo físico dessa revolução por uma nota, não por cupidez mas para garantir que ela sobrevivesse. Em cima de muita lareira burguesa há bombas-relógio inacreditáveis. Assim também Carmela faz peças que são simultaneamente desejáveis e desafiadoras, arte altamente experimental que não fica no gueto nem no projeto mas ocupa majestosamente uma galeria importante. Colecionadores sérios, coragem!

 

Publicado em:
Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 09 ago. 1988. Ilustrada, p.E1.

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