Marcos Gallon
Julho de 2021
[english]
Boa parte da poética de Carmela Gross carrega uma abordagem sobre o espaço urbano.
Desde 1969, ano em que finalizou o curso de graduação em Artes na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), em São Paulo, Carmela (1946) tem refletido sobre a cidade como seu universo vivencial. Nestes mais de 50 anos, seu corpo de trabalho foi sendo construído por um vocabulário em comum com o que se vê nas ruas, avenidas e demais configurações urbanas, como o neon que a artista incorpora das fachadas de estabelecimentos comerciais.
Muitos artistas não usam esse estar no lugar para articular o trabalho. Eles trabalham pelo mundo e articulam outros elementos. Como o meu trabalho é altamente concentrado na minha vivência de uma única cidade, as vezes ele afunda mais, as vezes ele percebe uma superfície muito estridente e as vezes busca o núcleo dessa superfície.
Tudo isso até que veio o confinamento da pandemia e, como vários artistas que vivem esse período em suas casas-ateliês, Carmela manteve uma rotina diária de trabalho pesado, que afinal pouco alterou em suas práticas de produção artística. Ela seguiu colando, desenhando, empacotando, manchando, perfurando, pintando, preenchendo e rasgando apesar da bruxa invisível que as vezes não a deixava fazer nada.
Nascida em São Paulo, cidade onde vive e trabalha, Carmela carrega em sua obra um aspecto afetivo cuja gênese está no espaço público.
A afetividade constituída a partir dos elementos da cidade, da experiência viva com a cidade vai te formando. É evidente, eu trabalhava em praças públicas com crianças, eu saia pela periferia fotografando pintura de padaria, pintura de borracheiro, pinturas populares das fachadas das casas, dos anúncios. Todo esse universo da linguagem urbana acaba sendo um centro, um foco de interesse importante.
Mas qual é o aspecto da cidade que interessa? É o luminoso, e o anúncio, é o modo como as pessoas circulam, é o modo de andar, é uma certa cor, é um certo passear pela cidade? Para Carmela, a constituição do núcleo fundamental do trabalho está ligada à percepção dos espaços e seus entornos: são os edifícios, é a arquitetura, é o interesse nesse aglomerado de coisas que está no cerne da sua visão de cidade. Diferente de muitos artistas, ela não é uma viajante.
Muitos artistas não usam esse estar no lugar para articular o trabalho. Eles trabalham pelo mundo e articulam outros elementos. Como o meu trabalho é altamente concentrado na minha vivência de uma única cidade, as vezes ele afunda mais, as vezes ele percebe uma superfície muito estridente e as vezes busca o núcleo dessa superfície.
O bonito da arte é que ela sempre trabalha com uma espécie de superfície e a superfície é sempre o mais fundo; aquilo que é evidente é o mais fundo mesmo. A arte está inteira na superfície. O trabalho tem uma capacidade de se imantar do entorno. As vezes parece que ele foi feito para um lugar específico, mas na verdade é a capacidade que ele tem de contrair e de absorver o entorno; é um polo onde tudo que está em volta acaba formando um determinado sentido com o trabalho. Não é o trabalho que vai para um lugar específico, é o contrário, o lugar se torna específico porque lá foi feito aquele trabalho.
A individual que Carmela apresenta na Vermelho conta com três instalações inéditas, e com o vídeo LUZ DEL FUEGO II (2018).
Na fachada, a instalação X (2021) cria uma tensão entre o eixo vertical e o horizontal fazendo com que aquela grande superfície rígida se conecte com o chão. A ideia de juntar esses dois eixos é fundamental na obra de Carmela, e especialmente em X pois já não estamos no plano do visível, mas no plano da participação que requer como condição a participação física do observador.
O fogo é um elemento que surge em seus vários estados na individual.
LUZ DEL FUEGO II emprega imagens de incêndios publicadas em jornais de circulação diária. Fogo em carros, fogo em prédios, fogo no pneu, ruas interditadas pelo fogo. Imagens de conflitos e confrontos em diversos países, além de imagens de incêndios que consumiram instituições culturais brasileiras nos últimos anos compõem a obra. LUZ DEL FUEGO II constitui um documento negativo em preto e branco dos acontecimentos que desde 2008 têm ocupado as páginas dos principais periódicos no mundo.
O fogo reaparece em FONTE LUMINOSA (2021) no formato de lava de um vulcão. Na instalação, Carmela desenha sobre a parede com o gás incandescente contido em lâmpadas de neon vermelho.
A matéria do vulcão já está presente ali. Ela é feita com filamentos, com linhas que são as linhas do desenho. Esse desenho foi sendo ajustado de maneira que ele adquirisse uma dinâmica própria, uma coerência interna que possibilitasse essa ampliação e essa fatura. Mas na verdade é um desenho ampliado, um desenho arquetípico da memória de todos; de um acontecimento extraordinário que se chama explosão de matéria e de rocha liquefeita pelo calor e pela pressão.
A luz produzida pelo neon invadirá a sala 2 da galeria que será ocupada pela instalação composta por 226 desenhos com dimensões variadas CABEÇAS (2021), que emprega papel e tinta nanquim, remetendo mais uma vez a ideia de carbonização. Os desenhos são feitos com uma mancha de tinta sobre vidro. Posteriormente, Carmela coloca sobre a mancha um papel fino que absorve a tinta, e, depois de seco, ela retira toda rebarba branca e fura o lugar da boca e o lugar dos olhos. Essa figura informe se insinua pelo acaso. Não se trata então de uma forma buscada ou construída, mas de um processo que induz à descoberta de figuras não imaginadas. É uma multidão possível, de uma cidade que abarca toda uma diversidade como São Paulo.