Ana Maria de Moraes Belluzzo
As formas elementares reveladas recentemente pela artista Carmela Gross provocaram a curiosidade do observador que, ultrapassando o momento inicial de estranheza, submete-se às experiências perceptivas destas configurações ativas.
Elementares, sem se parecer com objeto algum, intencionalmente desassemelhadas das referências habituais, estas formas impedem jogos associativos, que porventura possam oferecer maior comodidade ao leitor. Por isso mesmo, inusitadas, apresentam um alto teor de legibilidade. São corpos que flutuam inquietos, pairam sobre o papel. Matéria em suspensão, gravitam na dinâmica invisível dos eixos estruturais ocultos do papel. São campos de força ativos, magnéticos, suscitando uma experiência visual intensa em quem observar atento estes corpos, mutantes fixados em um momento de sua probabilidade e revelados na duração do tempo do olhar. A rigor, não são corpos, senão imagens. Silhuetas flutuantes de aparência homogênea. Indefiníveis pelos contornos, que se desmancham e irradiam a mancha visual. Sobre ela a vista pousa, como um tato, e descansa, desfocada, na apreensão geral, para acordar com a luminosidade do contorno branco, que aparece como uma aura em torno do esfumado.
Carmela chamou-as primeiro de buracos negros. Identificou-as depois com os quasares, quase-estrelas, radiofontes quase estelares recentemente descobertas por radioastrônomos. Um quasar se parece com uma galáxia e não é uma estrela. Emite ondas radioéletricas tão intensamente como as estrelas não fazem. Em torno dos quasares surgiu muita especulação e muito mistério: tão distantes da Terra, que não podemos medi-los; emitem tanta energia, a ponto de podermos receber sua radiação. Inquietam por sua aparência, por serem muito pequenos, por sua energia, por estarem muito distantes.
As sucintas descrições dos quasares, encontradas em um guia de astronomia de Colan Ronan, forneceram o nome para as experiências plásticas já concluídas por Carmela. Confirmação sensível. A artista associa o caráter enigmático dos corpos descobertos às imagens recém-criadas. Por que estas configurações plásticas se apresentam, oticamente, tão ativas? De que materal se formam? Qual teria sido sua origem?
As manchas escuras se definem como unidades elementares e aparecem sob vários formatos, mas sempre densas e compactas, em torno de sua própria centralidade, mesmo quando apresentam pequenas assimetrias e variações com relação a este centro. Esta unidade elementar é construída também pela disposição nuclear da forma no campo visual, o centro da mancha escura coincidente com um eixo imaginário da folha branca de papel, no caso, com o eixo vertical central.
Parecem resultar de cuidadosa operação cirúrgica. As etapas deste processo não são evidentes, estão ocultas. Imagens revelam-se abruptamente e não deixam indícios para a compreensão de seus nexos causais. Surpreendem. Por isso mesmo, intrigam e provocam a interrogação. São resultado de sucessivas traduções de uma imagem em outra e acabam por negar a equivalência entre os casos extremos. Uma coisa que passa a ser outra. Salto qualitativo. Mas também ironia.
Convém ressaltar que, em nenhum momento, Carmela se relaciona com o real, o diálogo se estabelece entre o olho e a imagem – este substituto. A artista se move no mundo da linguagem, dos signos que duplicam as coisas, no universo dos códigos, processos, meios e princípios de representação. Conhece bem a nova dimensão da questão advinda da industrialização recente, que ampliou espantosamente o mundo reprodutível, trocável e transferível por meio dos recursos da tecnologia. Os sons e gestos que estão no lugar das coisas, os nomes, a grafia do desenho e da palavra, a escrita. A imprensa, no lugar da escrita. As alterações tecnológicas da indústria da informação. Reprodução do som e da imagem. Fotografia. O desenho não é mais o mesmo a partir da fotogravura. Reprodução do tempo: o filme de cinema e a TV, manipulação do tempo com o vídeoteipe. O desenho na grafia eletrônica e a reprodução do espaço tridimensional. Carmela encontra-se diante da atual saturação de signos, produzidos pelas complexas operações tecnológicas. É com relação a eles que constitui imagens radicais, que retornam à raiz, a seus fundamentos. Imagens fundamentais. Usa também processos técnicos. Em contra-ataque, poetiza, fabrica ironias.
Tanto os CARIMBOS, realizados em 1978, quanto o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, de 1981, já demonstravam a atenção voltada para os meios técnicos, sejam meios de representação, ideação, reprodução do espaço, sejam instrumentos e meios de materialização e execução da idéia. Carmela ampliava as possibilidades de reprodução manual pelo carimbo, descorria sobre notações gráficas, critérios de projeção espacial, métodos de desenhoe e cartas para a construção do céu. O humor insurgia silencioso e mudava a pontuação. A inversão de sinal, tudo não passava de ilusão. Evidenciava-se, então, que a artista buscava a relação direta e não mediatizava com o mundo, em que um gesto imediato – sem carimbo – apontasse um mundo impalpável, sem coisas. Revelava-se então o mundo incomensurável e incorpóreo, feito de matéria gráfica e plástica e transparências que desvendam o seu fascínio pela nuvem e pelo céu. Construia signos do irreal, do estado permanente do sonho. Como a nuvem de tijolo e as casas de céu, todas as imagens eram aspirações que desmentiam as notações técnicas no interior do próprio desenho. Eram mentalizações.
Como indicam esses trabalhos ainda recentes, Carmela realizava um discurso artístico sobre a arte.
Vejamos os QUASARES. Aqui a menção ao processo de criação não é explícita. A artista parte de pequenas ilustrações, quase todas retiradas da Enciclopédia. A escolha inicial recai, portanto, sobre desenhos para reprodução, precisamente gravuras em metal do século XVIII.
Vale notar que atualmente estas ilustrações têm conquistado o interesse de editoras européias e encontram-se em reedições que reúnem exclusivamente as gravuras da Enciclopédia. Artistas gráficos contemporâneos também têm sido atraídos por esta sorte de imagem, a ponto de utilizá-la em suas soluções. Carmela nelas encontra o desenho lavado, lambido e impessoal, mais ou menos o que representaria para nossa época um catálogo de peças. É significativo que tenha partido justamente destas figuras. A visão enciclopédica, que se propõe na época como um sistema aberto de conhecimento, refletindo sobre cada aspecto do universo ordenado pela razão, chega pelas ilustrações reeditadas sob a forma de registro figuras inventariadas, cada uma em sua classe. São plantas, animais, objetos e instrumentos, cujos desenhos não resultam de fonte única de luz, nem decorrem do ponto de vista monocular, propagado pela estética do Renascimento. São perfis, descrições, anotações, arabescos, enfim, escritura sem espacialidade perspectiva. Cada figura possui uma visualidade em si, nåo se definindo nas relações de proporção e medida matemáticas. Nestes desenhos de pequeno porte, os objetos ao cerco geométrico.
As figuras simples – como uma espada ou uma planta – serão submetidas pela artista ao processo de ampliação por xerox. O xerox, como se sabe, homogeiniza o tom, elimina valores, volumes, destituindo a imagem de detalhes. Ampliar várias vezes a mesma imagem significa também aproximar mais e mais o olho, olhar com uma lupa.
Após sucessivas reproduções-ampliações, a imagem é fotografada, sendo o negativo ampliado sem foco. É esta operação que vai conduzir à seleção destas formas mutantes. É eliminada a figura que resiste à destruição semântica e cuja forma ainda seja alusiva, isto é, ofereça alguma sugestão, quer de um objeto, quer de uma forma conhecida. É selecionada a figura que perdeu qualquer referência.
As traduções sucessivas destruíram o signo, resgatando a visão direta da forma, sensação reinstaurada pela mancha escura. O processo demonstra a redução do signo às tendências estruturais de sua forma visual, tendências que não devem ser confundidas com a sua aparência, nem com a linha limite de seu contorno, tendências que apontam sentidos intrínsecos.
As duas operações básicas controladas pelo olhar seguro da artista – a aproximação da imagem, aumentando-a, e o enfraquecimento do seu teor de representação – destruíram o signo para reduzi-lo à imagem da sensação, ao momento inicial da apreensão visual – o sentir com a vista –, anterior à percepção lógica cerebral, anterior ao conceito. Este momento de sensação da forma, pode o leitor descubri-lo, por analogia, na leitura desta exata palavra, que lhe chega pela grafia, irmã do desenho, sob a forma de alfabeto de letras estruturadas por valores visuais impressos. A compreensão do texto apóia-se no gesto do olhar que, na fração de segundo, registra o detalhe da letra, forma-suporte do significado. O momento anterior à intelecção do texto, e não o texto, pode oferecer uma comparação, ainda que grosseira, ao objeto de investigação de Carmela. O que a artista ampliou e evidenciou, já era familiar, já víamos sem concentrar a atenção do olhar.
Carmela construiu as imagens primordiais, anteriores à percepção e à significação: forças visuais que constituem a forma ou estímulos que constituem as forças.
A forma de representação do espaço exterior introjetou-se em espaco interior. O espaço existente entre os homens e os quasares condensou-se nesta experiência. O olho aproximou-se tanto para investigar a figura que ela se tornou imagem mental. A imagem tão mediada por operações técnicas não passa de imagem imediata da consciência, evidência da sensação.
Publicado em:
Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 09 out. 1983. Folhetim, p.8-9.