Tornar real a realidade

Entrevista com Carmela Gross realizada por Arte&Ensaios, em 20/06/2005, no Rio de Janeiro, com a participação de Fernanda Lopes, Glória Ferreira, Guilherme Bueno, Ronald Duarte, e Daniela Labra, como convidada especial.

a/e – Seu trabalho começa no final dos anos 60. Você era próxima ao pessoal do Grupo Rex, e participa de um momento muito importante da arte brasileira, com intervenção urbana, por exemplo, a ESCADA (1968), e também da manifestação das bandeiras na rua (Bandeiras na Praça – 1968). Como você, Carmela, recebeu essa cena, se inseriu nela e qual era a sua visão? E como era a relação entre os artistas do Rio de Janeiro e de São Paulo?

Carmela Gross – Aqui no Brasil o ambiente muitas vezes escamoteia a posição do artista. E isso vale para qualquer um: para críticos, estudantes de arte, artistas. No final dos anos 1960 acontece uma efervescência no plano da produção, do coletivo e das instituições. É uma grande fogueira: o Brasil se mostrando, se pensando, se refazendo. O artista aparece nessa cena. Como jovens estudantes achávamos que ao pensar a cidade se podia tudo. Saíamos pela rua pichando, fazendo coisas… intervenção urbana. A cidade era um grande plano onde a gente podia desenhar: se podíamos desenhar no pequeno, podíamos também no grande. Tudo podia.

a/e – Você participa de duas edições emblemáticas da Bienal de São Paulo: a de 1967, com todo o embate com a Pop Art, e a de 1969, que é um marco de resistência política.

CG – Isso também acontece no plano da instituição. A Bienal de 1967 é o grande aporte da Arte Pop, com uma retrospectiva inteira do Edward Hopper e com todos os artistas do início da Pop – o Rauschenberg, o Jasper Johns, o Rosenquist, o Oldenburg, o Andy Warhol… Eu era estudante de arte e nunca havia ouvido falar disso. Uma extroversão da arte naquela escala nunca havia acontecido… era como se fosse a Bossa Nova. A Pop virou o universo da arte. Nem precisava estudar história da arte ou prestar atenção em outros movimentos, porque a Pop entrou na veia. Veio direto, total, amplificada, organizada e para ser vista, deglutida, consumida, em uma escala monumental mesmo. Nunca vi uma representação internacional com essa escala. A Bienal de 1969, ao contrário, já prenunciava os anos negros que viriam depois. Participar também foi importante porque aí pensávamos o embate entre a arte e o popular, as manifestações urbanas, a arte na vida cotidiana, na vida em geral. Era essa a proposta, na rua, na escola, no movimento com as crianças em praças públicas.

a/e – Em 1965, quando você entra na escola, tem o Grupo Rex, acontecem a Proposta 65 e Opinião 65…Como era a relação com o Grupo Rex, e com os artistas do Rio?

CG – Estudo em uma nova escola de arte, a Fundação Armando Alvares Penteado, hoje considerada até uma escola careta, fechada, mas que naquele momento era a única escola de arte. Não existia ainda a Escola de Comunicação e Artes da USP. Existia a Escola de Belas Artes, considerada completamente passada e muito acadêmica mesmo. Na FAAP, criou-se o “Curso para a Formação de Professores de Desenho” (que já existia no antigo MASP e foi transferido para a FAAP). Conduzido basicamente pelo Flávio Motta, e outros alunos dele da FAU – o Flávio Império, o Sérgio Ferro, o Rui Ohtake, o pessoal da Politécnica, se desenvolvia por quatro ano. Tínhamos matemática superior, desenho geométrico e descritiva. Saíamos pela cidade fazendo documentação de pintura popular, de pintura de borracheiro e até as pinturas nos muros da periferia da cidade. O Flávio Motta morava tempos no Rio de Janeiro e tinha contato com o Hélio Oiticica, com a Lygia Clark, com a Lygia Pape, e com outros artistas daqui, e, também, com críticos de arte, como Mario Barata e Clarival do Prado Valladares. Foi ele, junto com o Nelson Leirner, que imaginou o “Bandeiras na Rua”: eles mesmos fizeram bandeiras e resolveram vendê-las nos sinais da cidade, como uma festa de bandeiras na rua. Depois Flávio Motta touxe essa manifestação para o Rio de Janeiro, juntando vários artistas daqui e de São Paulo. Fizemos um grande desfile de bandeiras na Praça General Osório.

a/e – É através de palestras na FAAP que vocês conhecem o Wesley Duke Lee, integrante do Grupo Rex. Você fez parte do grupo de jovens artistas que expuseram na Rex Gallery, aliás, na única exposição feita com obras que não eram do grupo. Como foi essa experiência, o convite e o que você apresentou na exposição?

CG – Quando falo da cena e dos artistas, acho importante se guardar certas distâncias. Eu era simplesmente uma aluna. Não era uma artista conhecida ou que tivesse grandes atuações, nem nada desse tipo. Houve uma série de seminários na faculdade, organizada pelos alunos e pelo Sérgio Ferro basicamente, com pessoas de outras áreas: com o Roberto Schwarz, Walter Lourenção, Aziz Ab Saber, entre outros. O Wesley foi um dos artistas chamados e achou interessante fazer uma ponte entre os alunos e a galeria, na qual participava junto com Geraldo de Barros, Nelson Leirner, e o grupo recém incorporado (Carlos Fajardo, José Resende, Baravelli e Nasser). Junto com Diva Taddei, Iza Ribeiro, Mario Ishikawa, Marcello Nitsche, Yoshihiro Hashimoto, fizemos a exposição na Rex, que não se configurava de fato como uma galeria. A parte da frente era ocupada pela Hobjeto, loja de móveis do Geraldo de Barros; e na parte de trás existia um espaço, não tão grande, onde faziam as exposições. O meu trabalho eram moldes de esculturas – ao invés de apresentar a escultura terminada, pintei os moldes e os coloquei lá.

a/e – Qual foi, para você, o aporte do Grupo Rex? Ele teve de fato uma repercussão, uma interferência naquela cena paulista? E na brasileira?

CG – Era tudo muito pequeno. Não consigo hoje nem falar direito disso, primeiro porque era muito jovem naquele momento: tudo era novo. Desconhecia as manifestações do Rio de Janeiro como o Neoconcretismo, ou a relação entre neoconcretos e concretos. Isso era uma cena anterior a minha e eu, como um jovem de 18/20 anos, não conseguia fazer essas relações, nem avaliar o peso de um acontecimento como esse na cena de São Paulo. O fato é que mobilizava muitos artistas, a imprensa, os críticos. Foi importante porque quebrava todos os critérios de galeria, de exposição de obras de arte, principalmente pela atuação do Nelson Leirner e do Geraldo de Barros. Quem atuava no sentido iconoclasta, no sentido Dadá, ou no sentido demolidor, era muito mais o Nelson Leirner. O Wesley ficava em uma coisa mais erudita, mais sabedor… Era o dono do Marcel Duchamp em São Paulo. (risos) Não sei se eu estou fazendo as coisas ficarem um pouco provincianas, mas era mais ou menos isso o que acontecia.

a/e – Você começa com o desenho…

CG – O desenho era importante para mim. Não sabia nada muito. A diferença da cena é importante. Talvez não dê para generalizar, mas hoje as pessoas falam assim: “Eu quero ser artista”. E aí procuram os canais para de fato concretizar esse desejo. Nesse período, não havia essa demarcação clara. Sabia que queria ficar perto da arte, dizer coisas através de um material visual. Mas não dava para falar “Eu sou artista”, “Eu quero ser artista”, “Eu vou fazer isto porque os canais são estes” e se articular e expor… Não era isso. Eu dava aula para criança, fazia intervenção urbana, expunha na Rex, estudava um pouco de História da Arte… um campo de conhecimento, aberto para muitas vertentes, mas sem demarcação a priori. O desenho para mim sempre foi instrumento, uma forma de escrita, acho. É onde de fato você discute conceitos, faz proposições, e constrói o pensamento. É o mais próximo do pensamento porque lida com relações mais abstratas, mais construtivas, mais conceituais mesmo. Pode se desdobrar em uma obra, em outro material, outro meio, ou pode, em si mesmo, ser uma questão de discussão, ou uma ponte para se pensar até a história da arte. Isso foi muito valorizado na minha formação, pelos professores que tive, e por uma prática. A arte como pensamento, como pensar o real. O desenho é um instrumento importante porque está pensando esse real. Torna real a realidade.

a/e – Segundo Ana Maria Beluzzo, você começa seus trabalhos com as nuvens e depois tem um outro marco que é o Projeto para a construção de um céu, de 1981. Mas, ao mesmo tempo, existe tanto essa questão do desenho mesmo, que é um projeto para um céu, quanto por um outro lado, dado uma materialidade, há um objeto, uma forma como o céu.

CG – É, na verdade, uma construção em cima do desenho. E não se pode esquecer a cena… Foi sendo desenvolvido a partir do meu mestrado, para o qual havia apresentado o projeto de estudar teoricamente o desenho; estudar o desenho na arte brasileira, desde a Semana de 22, do que se chamou de modernidade, e pensar como ele era constitutivo dessa linguagem brasileira. Naquele momento não imaginava que um projeto artístico pudesse ser avaliado como tese. E no decorrer dos estudos, fui desenvolvendo a questão do desenho de observação. O que fazia esse desenho reverter esse processo, passando a ser não só um apontamento, uma assimilação do real, mas um projeto para uma realidade. É por isso que o desenho de observação é proposto como um projeto arquitetônico: para dizer que o desenho é sempre construção, e mesmo quando está decalcado no real, ele está reconstruindo, refazendo o real de um outro modo. É nesse sentido. E daí tem a anotação de vários fragmentos da Carta Celeste do Hemisfério Sul e de projeções topográficas daquilo que tinha sido desenhado com lápis de cor. Por fim, um carimbo lateral assinado atestava que aquilo era um PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU. Exatamente pensando o desenho como projeto.

a/e – Você vinha da experiência com os carimbos, onde o pensamento e a subjetividade são duas coisas muito presentes. O carimbo é o projeto para a construção de uma pincelada.

CG – Nos carimbos também era essa coisa da analítica do desenho, de buscar, de isolar na produção de uma obra o que é o elemento estruturante da construção. Analiticamente tiro esse pequeno fragmento e aí, é claro, há toda uma construção de pensar o momento, a cena dura e burocrática vigorando no país. Aquela pincelada que antes fazia parte de um universo que forma um todo, que é um desenho, que é uma pintura, que se posiciona frente ao mundo com uma integridade, vira um fragmento, vira repetição, um gesto burocrático.

a/e – Sempre há permeado na diversidade dos seus meios (desenho, pintura, mídias eletrônicas etc.) a idéia de um desconcerto do olhar: de tirar o prumo do espectador com uma pincelada que é pronta, artificial: uma disponibilidade para a experiência. No Hotel, no caso da Bienal, e sua relação com a espetacularização do evento, ou ainda do próprio espaço, da cidade, é anti-monumental porque só visto no momento em que se está em trânsito. Quando você o apresenta na Galeria Raquel Arnaud, solicita um outro tipo de posicionamento do espectador: a obra é imóvel e o espectador móvel, ainda mais tendo o dispositivo mecânico de uma esteira. Há toda uma conotação irônica também, enquanto na Aurora talvez se coloque a questão da imagem especulativa. Como você lida com essas questões, com esse nó que faz um desvio de rota nesse hábito do espectador, no que ele espera?

CG – Isso está, acho, inscrito em um momento geracional. Muitos artistas como eu também trabalharam em muitas frentes diferentes com esse sentido de, usando a sua palavra, desmontar, desconcertar o olhar, porque se está pensando o mundo. E para pensar o mundo em um determinado momento é importante desmontar, desconcertar, desarticular, se penso na atuação do artista como esse cara que pode tornar real a realidade. Colocar aspas, no sentido “experimental” de pensar na resistência dos materiais e a do olhar. Tem esses desvios pela materialidade, mas a linha que costura é esse desconcerto mesmo, porque se a realidade é desconcertante, não tem porque arrumar tudo em uma obra que signifique a obra do artista, com começo, meio e fim… Nunca acredito nisso.

a/e – Nos anos 1960, havia todo um discurso político que orientava as intervenções urbanas. Você estava falando da Pop, que “entrou na veia”. Hoje o Pop deu um grande passo: está totalmente na nossa vida e pode ser pensado com relação ao espetáculo. O Hotel, na Bienal, também já dá a entender essa faceta espetacular das grandes mostras e eventos de arte, com esse apanhado de artistas. A geração atual, também está falando de intervenção urbana, mas não fala da Pop, e sim de espetáculo, de desconcertar o olhar, de desviar o olhar, ações urbanas… Visita-se o Situacionismo. Como você vê o paralelo entre os anos 1960 e hoje?

CG – É difícil equacionar todos esses elementos, porque são componentes que estão aí, online, que você usa como puder… é tão difuso, é tudo tão possível que você só precisa esperar o momento certo para armar. Não pensei o Hotel como espetáculo, ainda que ele tenha exatamente esse caráter pelo próprio fato de ser um luminoso em uma fachada de um edifício. Está mais ligado à linguagem urbana, que é a do luminoso, a do anúncio, a da formulação sintética através de um embate direto. O Hotel, na verdade havia sido pensado para uma Bienal anterior, em um momento em que toda a estrutura estava um pouco desmontada com a dispersão da diretoria, e sem curador… Por ter sido anulada a Bienal internacional, resolveram então fazer uma bienal intermediária. Fui convidada, mas depois de algumas reuniões se apresentou a questão de que aquilo era uma bienal nacional, 50 anos da bienal. Não havia nenhum sentido fazer um trabalho daquele em uma Bienal na qual a fotografia do Ciccillo Matarazzo ocupava a fachada do prédio inteiro. A questão da atuação do artista hoje é pensar o momento de dizer uma coisa, o momento de colocar um trabalho, o momento de você fazer um corte ou abrir uma fenda ou por uma cunha. Não fiz trabalho algum. Foi uma decisão muito difícil, porque queria muito fazer esse trabalho. No momento seguinte, quando fui convidada pelo Agnaldo Farias e a Bienal novamente se estruturou para uma mostra internacional, aí você pode fazer o comentário e aí ele forma sentido.

a/e – Há em seu trabalho uma reflexão conceitual sobre a questão da escala, quer seja pelo o meu desenho, na escolha de planos, como também no Hotel. Há uma certa passagem.

CG – Essa passagem é importante. Importantíssima. Já falei isso, acho, alguma vez, em algum lugar. No final dos anos 1960, e não só com o meu trabalho, os trabalhos eram monumentais, mesmo em exposições ou salas especiais da Bienal, ou ainda em outros eventos, como as Bandeiras na Rua. Existia uma extroversão. Nos anos 1970, com todo o processo de repressão, e o isolamento do Brasil (de fato os artistas estrangeiros não mandavam trabalhos nem para a Bienal nem para nenhum outro tipo de exposição, como boicote à ditadura militar) o que sobrou para a gente foi o espaço exíguo da folha de papel, do desenho, da gravura, do pequeno formato. Na arte brasileira em geral e talvez na internacional também: há um encolhimento de escala, há uma proposição que se introverte, há uma relação do mais próximo possível… Depois retoma-se, de novo, o problema da escala, não como espetáculo, mas como uma possibilidade quase dessa coisa Pop, ou em termos gerais, da cultura de massa. É uma amplificação mesmo, de embate direto com o passante, com o desavisado, com aquele sujeito que não é formatado para a discussão, que a instituição representa sempre.

a/e – Em seu trabalho é latente a coisa da cidade. Você não se assusta com a cidade grande. Como é a aceitação, a reverberação do seu trabalho até por conta da escala, do dinamismo em cidades menores, porque o seu trabalho passa muito São Paulo, como se viesse com uma placa do lado escrito “São Paulo”.

CG – São Paulo é uma cidade construída do nada. Sem paisagem, sem encantamento. É um aglomerado de possibilidades, não ligado a vida mas a um pólo econômico. Não se constitui de fato como uma cidade estável, desenhada em conformidade com uma determinada topografia, com uma certa luz. A luz é artificial, os caminhos são os possíveis, onde tem lago se aterra, onde tem rio se canaliza. É uma interferência quase truculenta em cima de toda uma paisagem natural. Como artista, vivendo e absorvendo esse universo, é claro que a articulação de linguagem passa por aí também. Outra coisa é fazer interferência em outro lugar. Por exemplo, no Projeto Fronteiras [Itaú Cultural – 1998-2001] onde 10 artistas foram convidados para fazer interferências nas fronteiras do sul do Brasil: Argentina, Paraguai e Uruguai. Antes de pensar o projeto, escrevi um texto sobre o que significava a interferência do artista no espaço, nesse espaço indeterminado da fronteira – o que é uma fronteira, senão uma demarcação? Está no mapa, mas não na realidade. Só aceitaria fazer uma interferência em uma cidade porque não via arte nessa geografia anônima de uma fronteira bucólica, natural, mapeada. Queria uma relação com as pessoas, com o espaço urbano ainda que fosse o menor possível, ainda que fosse uma micro-cidade de fronteira, das várias que percorri. Se houvesse algum tipo de interferência e algum tipo de troca aí, seria o artista, a cidade, a praça: o lugar do encontro, da passagem, o lugar onde fazem a festa folclórica que quiserem, a quermesse, o bar, a criança que vai passear… Não vejo o artista fazendo escultura no meio do mato para Deus, nem estava com vontade de fazer uma escultura no meio do mato, nem que fosse uma grande interferência ou um grande caracol. (risos). E depois documentar e apresentar na galeria, no museu, e falar “olha como eu sou um grande artista”. Não me interessa.

a/e – E com o exterior, como se dá a sua relação? Do momento do Brasil isolado, ao qual você se referiu, a essa situação atual na qual, embora rarefeita, há uma significativa presença da arte brasileira…

CG – É que hoje tudo ficou tudo. (risos) Tudo é tudo. Tenho poucos trabalhos fora. Fui convidada para algumas exposições fora, em situações muito rarefeitas, as quais. inclusive não visitei. Algumas nos EUA, duas ou três na Europa e várias na América Latina – Venezuela, Colômbia, Argentina e Chile. Depois fui chamada para fazer esse trabalho na França e agora para fazer um trabalho em Istambul, mas… O mainstream da coisa internacional ficou mais no conhecimento pelo livro, pela leitura, e não em uma experiência direta da obra. Ao vê-la reduzida em um espaço de 30x30cm, em um catálogo de 50 folhas, você absorve daquilo muito mais as artes gráficas (risos) do que a obra. A minha relação com a cena internacional, eu diria que é quase precária. E, hoje, pelo contrário, os artistas jovens são completamente presentes nos museus europeus, americanos. Nos anos 60, os artistas estavam engajados no processo político brasileiro, depois tem uma grande vala de isolamento, depois nos anos 80 tem de novo uma extroversão, e uma extroversão principalmente da pintura e da imagem. E isso é imediatamente exportado como sendo a grande formulação dos jovens artistas: todos vão expor fora. Faço parte de um outro contexto, o do artista reflexivo, que pontua. Agora, passado o grande boom, começa a haver uma relação talvez mais reflexiva em torno desse tipo de trabalho. Não sei… Em todas as partes do mundo, existem hoje intercâmbios, ocupações de museus, artistas que vêm e que vão. Às vezes, parece-me como um confinamento, exportação de matéria bruta. (risos) Produto interno bruto, vai para lá, vai para cá, ocupa o museu… depois aqui vira moda também ocupar o museu. Mas ocupar o museu lá tem um sentido, intervir em uma instituição completamente cristalizada, fechada, voltada para muitas camadas de história da arte propostas dentro de uma organização completamente estrita. Aqui no Brasil, ocupar museu… o museu já não existe, nunca ficou em pé sozinho, coitado. É a mesma coisa que ocupar aqui a praia, porque não tem cara de nada, não tem uma ação de fato política, ou cultural, ou uma intervenção de fato. Parece que as coisas todas ficaram muito fluídas e amolecidas. Quando digo “tudo é tudo”, é porque é assim: tudo se troca por tudo, tudo vai para qualquer museu, todo museu vem para cá, qualquer artista se exporta e depois se importa, em contrapartida, um outro artista estrangeiro. É tudo muito esquisito.

a/e – Você começa na área de ensino em uma época em que a Escola Brasil está atuando também. Como você vê essa sua experiência e a possibilidade de se desmontar padrões através do ensino?

CG – Comecei a dar aula na universidade em 1972. Antes, dei aula na Escola de Belas Artes por dois anos, e o Zanini me convidou para a recém-formada Escola de Comunicações e Artes da USP, onde ele estava formando o Departamento de Artes Plásticas dentro dessa grande escola, com outros seis departamentos ligados à comunicações e às artes (Teatro, Música, Cinema, Jornalismo e Biblioteconomia e Comunicações). É um projeto dos anos 1960. Logo depois que se formou a cidade universitária em São Paulo, eles partiram da idéia, e isso é uma ideologia dos anos 60, da arte não ser arte, mas parte da cultura e a cultura ser informação – e neste formato foi criada a ECA. O Zanini convidou então um conjunto de artistas que atuavam como professores em outras escolas. É engraçado: ele pediu o meu currículo através de um amigo meu, Mario Ishikawa, que dava aula comigo na Escola de Belas Artes. Eu disse tudo bem, depois de 15 dias, 1 mês, 2 meses, o Mario falou: “Mas cadê o currículo? O Zanini está precisando”. Aí eu falei: “Ah é, esqueci…”, e escrevi, à mão, três, quatro linhas. Imagina se hoje seria possível.

a/e – Você conhecia o Zanini, não?

CG – Eu o via raramente, apesar de ter participado da Jovem Arte Contemporânea (JAC), e ter ganho prêmio inclusive. Dava aula para sustentar uma família. Não era nem uma decisão, uma opção, era uma possibilidade de emprego, de trabalho. O Departamento de Artes Plásticas, ainda nem se configurava como um departamento, porque para isso precisava ter não sei quantos mestres, doutores e titulares, e a única pessoa com titulação era o Zanini. Era simplesmente um aglutinado de professores. E dar aula durante esse período era inclusive muito contra-producente em relação à atividade artística. Havia uma discriminação do artista que dava aula.

a/e – Isso mudou completamente… (risos)

CG – Havia um adesivo, acho que feito pelo Granato, dizendo: “Adote um artista antes que ele vire um professor”. (risos) Era completamente horrível. Isso nos anos 1970. Muitos artistas entraram lá, a cada três meses havia um artista novo dando aula lá (Baravelli, Vlavianos, Mario Ishikawa, Donato Ferrari, Tomoshigue e Marcello Nitsche entre outros). Digo que faço parte da resistência, com Regina Silveira, Julio Plaza… Dar aula na Universidade nessas alturas, era por não servir para nada.

a/e – Nesse momento os artistas também tendem cada vez a ser formar mais…

CG – Aqui no Brasil, só começa nos anos 80. Quando defendi a minha tese de mestrado em 1981, eu era a terceira de Artes Plásticas (a primeira foi a Renina Katz e a segunda, acho, a Regina Silveira). Comecei a pós-graduação, que tinha uma duração de cinco anos, em 1975, mas ainda não havia o curso específico de Artes, pelo desejo de pesquisa, de pensar o que estava fazendo. Até porque a carreira universitária não estava desenhada ainda, com esse aparato atual, com curso específico de arte, linha de pesquisa em Poéticas Visuais. 

a/e – A presença da poesia concreta, da poesia visual foi importante para você?

CG – Não… Sempre fez parte da formação. Pensar pelo literário, pelo poético, pelo musical e pelo cinema, para mim são coisas muito, muito importante. É quase um pudor em relação às artes plásticas, medo às vezes de uma contaminação, de uma certa corrente, de certa uma certa linha. Incorporar a poesia, a palavra encenada, certamente vem da poesia, não só concreta, mas da poesia como um todo. Nesse sentido, sou mais duchampiana do que os duchampianos.

a/e – Em uma série de trabalhos seus há a presença da matéria, mas que nega o gesto. Nos trabalhos em MICA, por exemplo, tem a presença de alguma material escultórico, mas que, assim como nos carimbos, prescinde do gesto escultórico… Coloca-se a questão de como o trabalho pensa, em sua construção, a experiência da obra de arte. Se uma pintura é a experiência que se dá através do gesto, porque na pincelada se denota um certo estado expressivo ou sentimental, ou seja lá o que for, o que acontece quando isso é negado nesse objeto, como na escultura? Você discute a idéia da experiência da obra, e juntando com sua experiência como professora, o que é transmitir uma relação com a arte?

CG – Avestruz! Que complicação! Mas tem toda razão: mesmo quando o trabalho, que chamo de pintura-objeto (objetos de parede pintados, onde a questão não é da pintura, do gesto), ou quando faço acúmulo, com superposição de camadas de Mica (material industrial, usado – ou era usado – para resistência de ferro, de calor) ou ainda o próprio carimbo, que é um apagamento do gesto por um outro gesto endurecido, de um gesto expressivo pelo gesto repetitivo e uniforme, é sair dessa matéria expressiva. É muito mais uma construção: amalgamar as coisas com um sentido que não é o esperado, o rotulado para ser assim. É um pensamento analítico e construtivo. Nas aulas, que são um reflexo de fato do meu trabalho, é sempre essa mesma questão. Sempre digo que não se está fazendo arte, mas exercícios em direção à arte, a um pensamento capaz de formular criticamente ou de pôr de pé um tipo de realidade mas que, são simplesmente exercícios e sempre mais ligados ao desenho e ao projeto. Nunca é no sentido de ensinar uma técnica, um domínio sobre uma determinada materialidade.

a/e – O problema é essa idéia de um objeto artístico como algo portador de valor. Em outras palavras, é a concepção clássica de que um objeto artístico tem uma imanência, que talvez seja a aura da obra. E aí um trabalho como Comedor de luz, com todo esse caráter iluminista e se chama “comedor de luz”, remetendo à idéia de um gasto, desperdício… A integridade com a qual ele se dá não é tão neutra, enquanto no objeto artístico clássico…

CG – Há um duplo sentido, o do desperdício, de comer a luz só para comer a luz, de gastar energia, e, por outro lado, ele tem uma superfície nele mesmo. A própria luz, a estrutura de ferro, os fios que ficam embaraçados pelo chão, trazem de fato uma superfície vibrante que faz com que tenha, nem discuto se é ou não obra de arte, uma presença. É um acontecimento visível (para não dizer que é visual), e a essa força, com essa materialidade que está aí. Por que os fios sobram? Por que o ferro é extremamente espesso e pesado? E por que a luz é amarela? Todos esses elementos estão ali na superfície vibrando com o mesmo sentido de um objeto nada “comedor de luz”.

a/e – Pode ser um jogo de palavras, mas você faz o Comedor de Luz e você faz o Aurora. São duas questões de luz e quando você fala da luz, você fala de pintura.

CG – Da luz como a possibilidade dessa pintura ser o mais forte possível, o mais eletrificada possível, a menos ligada exatamente à pincelada e à competência, mas mais ligada a esse jogo ilusório de força.

a/e – Você falou algumas vezes de construção do desenho, do real. Sua formação, participação na JAC e entrada na ECA se dão em um momento muito forte do que foi a arte conceitual no Brasil, e esse pensamento conceitual parece sempre presente em seu trabalho. Como se dá essa relação, até mesmo o seu cuidado no uso da palavra “conceitual”, que parece vir, na sua fala, sempre como “construção”?

CG – Chamo de construção e de análise, por serem, talvez, os dois princípios básicos. Construção e análise são dois elementos que são do desenho, são pertinentes à arte conceitual, mas saem um pouco desse parêntese, que ficou uma categoria de arte. O sensorial que vem à tona, eu gosto muito. Ainda que a obra passe por um processo rigoroso de análise, de idas e vindas, de construção, de possibilidades (tenho alguns textos falando disso), é um querer. É um desejo de que haja uma extroversão. Há um poema, quase um hai-kai, muito bonito do Leminski: “Viver é super difícil. O mais fundo está sempre na superfície”. Acho que se pode dizer: “A arte é super difícil. O mais fundo está sempre na superfície”. Gosto desse primeiro embate direto com a obra. Tem que haver esse apelo sensório direto, ainda que isso venha amarrado por toda a questão conceitual. Mesmo o Projeto para a construção de um céu é isso. Desavisadamente, você pode olhá-lo como se fosse um desenho de céu, de nuvens, de luzes e cores. Esse lado sensorial, é, basicamente, o que informa. Depois pode-se ir separando as outras camadas subjacentes. Mas, se se quiser deixá-las de fora, se deixa.

a/e – O trabalho de Paris [bleujaunerougerouge, 2004] lida, mais uma vez, com a questão do estar urbano, do estar público. Diferente do Hotel, que se vê a distância, a cor não só se espraia em todo o espaço, como envolve também.

CG – O trabalho de Paris é diferente, por exemplo, do Hotel, ligado a um comentário histórico sobre uma situação específica. Muda a geografia e os códigos: não consigo decifrar rapidamente a coisa. Fui chamada para pensar um painel na fachada de um edifício de três andares e quando cheguei, o edifício, era paginado, diagramado por janelas. O que havia imagiando (um painel) não era mais possível. Era um edifício. Um desenho. Uma arquitetura. Pareceu-me extremamente complexo. Propus inicialmente a pintura do chão, porque era plano, e gosto muito dessa coisa do desenho no chão direto. Era a possibilidade, então, de fazer alguma coisa em um caminho que tem 100m, por 8m ou 10m de largura. Em um segundo momento, usei o módulo arquitetônico das janelas na fechada para projetar planos de cor, que, na verdade, já estão diagramados pelas janelas. Não se trata de uma citação ao Mondrian, ou ao “Boogie-Woogie”, ou ao que possa parecer dentro dessa linha. Mas, de dentro da fachada, respeitar a arquitetura, a sua construção básica, e simplesmente colocar um ritmo de cores, uma música possível.

a/e – Como é a sua relação com a imagem, tanto como registro, no caso das instalações, ou na utilização de meios imagéticos, como o vídeo, tal como o dos anos 70 em que a imagem era velada, ou ainda em Encontros, 2000, sobre São Paulo? Os Quasares, dos anos 80, por exemplo, são, de certa maneira, imagens destituídas desse caráter. 

CG – No vídeo dos anos 70, vou fechando uma televisão com estrias pretas: fechando, fechando, até a tela ficar preta. Trabalhei muito pouco com a questão da imagem no sentido do que hoje é entendido como imagem. Em Eu sou Dolores, Aurora, ou em HOTEL, a imagem vem como subproduto da palavra. A imagem se constitui porque a própria estrutura do trabalho carrega junto aquilo que está com ela, seja o espaço, seja a visão da janela no Eu sou Dolores, seja a fachada do edifício da Bienal. Não é um alvo determinado em um primeiro momento, mesmo no vídeo da cidade. É claro, o vídeo é completamente sedutor e se constitui como a própria imagem. Mas o que está ali amalgamado é uma experiência urbana, cotidiana, um sentimento de cidade, de passagem, de fluxo. Há uma certa narrativa onde a imagem faz parte. Claro que quando você põe um luminoso escrito hotel, ele puxa, carrega os luminosos de hotéis. Aliás, tenho uma coleção de fotos de hotel que os amigos me mandam. Não é lindo?! É a palavra que já carrega uma história inteira da imagem. Pode-se chamar de um trabalho conceitual onde a imagem é subjacente.

a/e – E a relação entre a palavra e a imagem, como em Aurora

CG – É principalmente por causa da cor e da luminescência, e do espaço onde ela se reflete. Então, tem todos esses elementos subjacentes, conceituais, estruturantes pela palavra, etc., mas de qualquer modo isso precisa estar em uma chave sensorial porque esse é embate, o face a face. E é claro que esse sensório, ligado ao conceito, ao que a palavra está dizendo, é que carrega junto a questão da imagem.

a/e – … há também um outro luminoso: Os cara fugiu…

CG – Us cara fugiu correndo. Foi montado pela primeira vez na parede do MAM de São Paulo, no âmbito do Projeto Parede, para o qual Tadeu Chiarelli, convidava a cada três meses um artista para fazer um trabalho na parede de entrada do museu. Isso daí é uma frase de rua, que eu catei e transformei em um desenho materializado em néon e colocado no alto da parede, que tem quase 5m de altura, pintada de cor-de-rosa, forrando uma faixa de desenho luminoso. É uma pichação de rua, com esse sentido da cena, da urgência. Conversa de tribos urbanas. No MAM, ele carregava junto toda a cena do museu, do muro e da rua. Existia esse trânsito que carrega de novo a imagem e tudo o que está junto com ela.

a/e – Nos anos 60, você realizou intervenções escritas nas ruas, antes do grafite está, em parte, absolutamente institucionalizado, cooptado pelo marketing, etc. (embora continue com força muito grande, como a pichação). Você continua se nutrindo desses elementos urbanos, de comunicação?

CG – Claro que sim. O grafite completamente emoldurado, decoração de muro, não me interessa. Mas gosto do grafite selvagem, que manda recado, exterioriza uma exasperação do anônimo, do encontro desse universo anônimo, da pintura de borracheiro, do pequeno anúncio, do luminoso em cima do edifício. Todos esses elementos urbanos que se cruzam são para mim do maior interesse.

a/e – A questão do anonimato é bem presente em seu trabalho, nos néons ou, mesmo quando tem matéria, como o metal ou a pedra. Sempre há essa sensação de esvanescência (talvez não seja a melhor palavra). Até o próprio luminoso: ele depende do tempo da luz, do suporte, precisa ser gerado. Apaga-se a luz e o trabalho desaparece. São os tecidos se desfazendo. É o alumínio derretido. Em alguns objeto-pintura a matéria escorre, se esvanesce. Tem sempre essa dualidade: a matéria dura, a pedra, o mineral presente, os grandes luminosos, mas ao mesmo tempo com a sensação de efêmero, volátil. É um paradoxo. É uma sensação super ambígua. E remete à coisa do anonimato: a veladura do vídeo, as facas [Facas, 1994] ou Eu sou Dolores. Quem é Dolores? Dolores saindo pela parede, pela janela, ganhando a cidade, dando a sensação que saía e não entrava…

CG – De fato o anônimo é um aspecto importante, sim. As pedras, no arco desenhado na parede [Pedras, 1996] são catadas. Nenhuma foi feita, construída, esculpida, raspada. É a pedra bruta catada na rua, na porta, em um resto de lixo de uma pedreira. As facas são feitas. Uma a uma. O que parece ser feito, é muito acaso. Quando cheguei na Holanda, tive que trabalhar com a cerâmica. Cheguei a conclusão que não ia dominar técnica nenhuma por não ser possível. A proposição, então foi a do gesto. Enrolar. De tanto fazer o gesto de enrolar… enrolar, enrolar, ele mesmo se esgotava. Depois achatar o rolo… rasgar… bater… prensar. Todos são gestos mecânicos, embora, é claro, com a intenção de que fosse, com todos esses gestos, mais ou menos uma lâmina, um material perfurante, uma cunha. De qualquer forma, tem esse itinerário básico, como um roteiro. E o resultado é gestual, de experiências com o material. Não é um formato. É o que resta do gesto muito primitivo. Em nenhum momento ali tem forma, ou depois polimento e acertos. O que saía, saía. Tanto que as facas estão em séries de formatos diferentes. Em um determinado momento aquele gesto se esgotava e nascia um outro daquele próprio esgotamento daquele mesmo gesto. É como se você mecanicamente aprendesse, e de tanto aprender, desaprendesse e desembocasse em uma outra coisa.

a/e – As facas dão a sensação mais de primitividade, de construir de novo mais do que dar conta do já construído, como também a série de buracos no Arte/Cidade, em 1994. É quase como uma negação à cidade…

CG – De certo modo… Mas aqueles buracos, em um matadouro, na primeira edição do ArteCidade, nada têm de primitivo. Nascem do desenho mesmo: pequenas anotações, em um caderno de papel de 20x20cm, do espaço, onde tínhamos reuniões toda a semana para se formular de fato o que seria o Arte/Cidade (que nesse momento ainda tinha um formato mais aberto, aonde os artistas iam, a cada semana, discutir, formular e pensar coisas). Durante essas reuniões fiz um desenho de anotações de uma seriação de furos, de interferências, de rompimento daquela superfície, que foi ampliado mecanicamente por sucessivas reproduções e ampliações. É o que resta desse gesto muito primitivo que está no chão. Não tem nada de muito casual, nem de primitivo. A matéria primitiva é o cimento no chão. A visualidade, a experiência do espaço com aqueles buracos, parece uma coisa primitiva, ou vamos dizer, rude. Mas não tem nada disso: é estruturante, construído pelo desenho como projeto.

a/e – Você teve filhos muito jovem e uma experiência de trabalho social. Até que ponto podemos dizer que esse seu rigor estruturante, seu rigor analítico, construtivo do trabalho e a presença do sensório…

CG – … é feminino. A mão direita e a mão esquerda. É claro que existe uma consciência subjacente, impressa no corpo, na subjetividade, na sua estruturação no mundo. Esses dois elementos do trabalho, tanto o sensório quanto o extremamente projetado, armado e articulado, é uma posição exigida da gente enquanto mulher hoje em dia, e que se encontra multiplicado em todas as artistas mulheres. Não sei se em todas, mas enfim é a disciplina do pensamento que depois transborda no sensório, mas ele tem esse osso duro também.

a/e – E a sua experiência com crianças?

CG – Foi bastante longa. Como disse antes, entro em uma escola de arte, mas sem saber bem o que quero ser. O curso tinha também uma vertente muito forte de ensino da arte, do desenho. Então um grupo de alunos, do qual eu fazia parte, começou a dar aula para criança, e depois decidiu ir para praça pública. Durante sete, quase oito anos desenvolvemos atividades com crianças na Praça Dom José Gaspar, perto da Praça da República.. Isso era todo o domingo. Foi uma atividade muito importante e que me deu muito gás. E junto com isso eu dava aula em uma escola de arte para crianças (com três salinhas de escritório no centro comercial do Bom Retiro) dirigida pela Fanny Abramovich. Foi muito estimulante até que descobri que aquilo lá não tinha muito a ver com arte. E a minha questão era arte. Foi quase traumático, não conseguia mais ir às aulas. Na praça, tinha mais a coisa pública, aberta, a cada domingo chegavam crianças diferentes, por vezes se juntavam 200 crianças. Era uma coisa muito intensa e muito bonita, mas também solta, aberta, sem a limitação da escola, da arte educação

a/e – Elevada como elemento de linguagem no seu trabalho, sua relação com a cidade é quase uma ode, tal a intimidade. E não é o espetáculo, como nos atuais trabalhos de interferência que necessitam um grau maior de explosão, para que grite. Você já carrega tranqüilamente essa relação com a cidade, o tempo todo. Mesmo lá nos confins do Brasil, você procura a praça, o urbano, exacerba inclusive, mas de uma maneira super orgânica. Como uma digital sua, algo que você imprime na cidade. Então como se dá essa relação da pequena cidade com a cidade grande e como você negocia essa linguagem sem virar espetáculo, como no Projeto Fronteiras? Quase se poderia dizer: o espaço público como um objeto.

CG – Para conseguir fazer uma inserção em escala urbana, sem ser espetaculoso, têm muitas histórias. No caso do Hotel, podia ser o letreiro de qualquer hotel da cidade. E na mesma escala. Pertence, se comunica e se estabelece na própria condição urbana onde o trabalho nasce. Mas dito assim, parece tudo fácil. Como se põe números nesse trabalho? 5m, 7m, 8m, que tamanho vai ter? Sempre uso “número” para não falar em escala, dimensão ou medida. Parto, então, de uma questão bem objetiva, que é o tamanho da lâmpada industrial – 1,20m e 60cm – para projetar a letra. Agora, se essa palavra hotel tivesse 50m de comprimento, o trabalho perdia completamente a força. Sua força está em pertencer à escala da cidade. Ele precisa entrar na escala do edifício, na da avenida que passa do lado, na do outro hotel que tem o letreiro ali, daquele outro hotel que você viu no centro da cidade à distância. Quase uma camuflagem. E não é esse o sentido. Toda essa orquestração de números, é completamente difícil e eu me sinto toda vez na beira do abismo. Um trabalho não me ajuda a pensar o outro e a saber o outro. Se fiz Eu sou Dolores com 25m de cumprimento, dentro de uma sala, Hotel não podia ter 25 ou 50m de cumprimento porque perderia seu sentido de anúncio de um hotel e passaria a ser anúncio de si mesmo, como a Coca-Cola é anúncio de si mesma. Até a hora que acende eu ainda não tenho certeza. O trabalho da praça de Laguna ficou sendo discutido por três anos e meio, quase quatro. Nada me garantia que os proponentes do projeto aceitariam ou não as minhas premissas. Foi difícil andar pelas cidades de fronteira para descobrir um lugar para fazer isso, até sair uma praça generosamente desenhada, onde trabalhei durante dois meses, colocando pedra por pedra com os operários, trocando conversa com eles. Você entra em uma outra sintonia para que o trabalho saia daquele modo. Mas nada é ameno, simples. É quase como decidir que quer entrar naquela batalha, ou não. Quando está pronto, parece que foi assim, fácil.

a/e – O trabalho de Laguna (SC) é permanente…

CG – É a discussão da obra pública. Toda vez que se está diante do espaço público, já não se está protegido por nenhuma cena institucional ou etiqueta que diga que aquilo é arte. Você pode achar até uma coisa esdrúxula, incompreensível, intransitável, mas você aceita: “Ah, isso é arte”. No espaço público, sem esse tipo de demarcação, essa etiqueta “arte” fica muito, muito, muito apagada. Diria quase inexistente. A interferência no espaço público tem a ver muito mais com as pessoas, com o que pode ser discutido com a pessoa anônima, que passa e não presta atenção, que tropeça na obra, que não vai entender nem perceber nada. A arte entra, então, na mesma cena de uma utilidade urbana, como uma calçada ou uma escada. São relações do espaço e da arquitetura, da circulação e da passagem. Desse tipo de coisa que não está no léxico dos artistas quando se faz uma obra dentro do espaço já protegido. O que a arte tem que ter é essa passagem entre o pessoal, o subjetivo e o coletivo, porque senão não se trata de arte, nem de nada, mas de uma expressão pessoal. Posso fazer o que eu quiser, onde quiser. A arte é pública por definição, mas a escala pública, no sentido de ser visível, experimentada, visitada ou indiferentemente traduzida na linguagem popular, não é em qualquer lugar, de qualquer jeito. Porque aí não estou falando de mim, mas tentando estabelecer um elo entre aquilo que é a minha subjetividade e o coletivo que está ali, incluindo o que pertence àquele trabalho, àquele lugar. E não necessariamente tem a ver com saber alguma coisa daquela comunidade. A arte tem que levar no seu bojo esse saber logo de cara. Não quero o esquadrinhamento sócio-político para saber então que aquela é uma comunidade de pescadores e que então eu vou fazer uma rede de pescar. Não. Não vou fazer rede para ninguém pescar. Qualquer de nós pode fazer uma intervenção aqui e agora, saindo pela rua, dançando, se fantasiando ou inventando um acontecimento. Não se trata disso e nem por outro lado responder fielmente aos anseios daquele espaço-tempo ali. É outra coisa. É uma síntese dessa relação do que eu, como artista, penso desse real, como é esse esforço de fazer a realidade virar real. É esse o grande esforço da arte. Tornar a realidade real, é você trazer para fora aquilo que já está ali pulsando de desejo de sair e você vai lá e carrega nas tintas. Coloca isso aí expresso com mais clareza. É todo o esforço da arte, seja na literatura, na música, no cinema. É esse o esforço, de você calcar no elemento da realidade, que já está ali, e fazer isso virar para fora. Ou seja, tornar real a realidade. E mais real, e mais visível, e mais experimentável, e aquilo que te faz pensar, aquilo que altere o fluxo normal. Pulsar junto com essa realidade, não necessariamente para fazer um mapeamento estrito ou uma expressão individual: é desse pulsar dessas duas vertentes aí que o trabalho sai. Nunca sei como se dá direito, poucas vezes um trabalho anterior ajuda em um próximo. No caso de Istambul, por exemplo, vou ter que me refazer, me refundar, me repensar. Não tenho reserva técnica na minha cabeça. A coisa vai se fundar desse embate com a cena proposta. Para o sim e para o não. É isso que chamo de tornar real o real. Todo o esforço da arte é esse. O tempo inteiro.

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