Douglas de Freitas
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O texto a seguir transcreve uma conversa minha com a artista, realizada em junho de 2017. A conversa, nascida de um roteiro prévio, girou em torno de algumas ideias decisivas do trabalho – a função do desenho e a relação com a cidade, por exemplo –, além de comentários sobre algumas obras e situações específicas.
O diálogo reverbera muitas outras conversas e memórias de outros encontros, ocorridos durante quase um ano de trabalho e convivência.
Concluímos que o jogo estrito, e às vezes mecânico, de perguntas e respostas, de fato, soaria limitado ante o diálogo aberto, e em diferentes tempos, que construímos. Por isso, optamos pelo recurso dramático de deixar as perguntas fora da cena – ressaltando a voz da artista e seus andamentos, ainda que de modo fragmentário. A descontinuidade nos pareceu mais condizente com os processos de trabalho da artista.
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Se você reparar bem, me parece que os trabalhos às vezes nem se juntam, não se grudam, um contradiz o outro. Depois que eu fiz o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, em seguida eu quis fazer os QUASARES. Chamei de QUASARES um conjunto de gravuras em offset, e o nome fazia referência a fenômenos celestes. Note que essas gravuras têm uma visualidade completamente invertida em relação ao PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU – são manchas pretas sobre um campo branco, um negativo do outro. É como se eu tentasse anular um pelo outro, e não reforçar. A intenção era, deliberadamente, desfazer o encantamento de um céu feito com lápis de cor. QUASARES são reproduções fotomecânicas, sem intervenção manual, e assim contradiz tudo que estava afirmado no PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU. Os trabalhos são ferramentas e engrenagens para a constituição daquilo que se quer como pensamento, ação crítica, atividade sensível no mundo.
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O mundo real aparece como motor e operador de uma situação, mas o resultado disso é de outra ordem. Acho que isso vale para qualquer obra de arte. Damien Hirst com a caveira de diamantes. Picasso e a guerra. Picasso, por exemplo, parte da reportagem sobre a tragédia de Guernica. Desenha a partir da notícia, diretamente… e depois resolve a escala, o desenho, os fragmentos, as pinceladas. Tudo isso é a reconstrução de Guernica no plano da consciência humana. Ele não reproduz o acontecimento, ele transmuta o acontecimento em seu negativo, como consciência histórica.
É por isso que o BARRIL, por exemplo, é uma metáfora reduzida ao mínimo. Quase uma não metáfora, porque traz à cena o próprio objeto de tortura, usado no DOI-CODI. O trabalho não está ali como objeto de tortura. Sua exibição convoca as potências sensíveis e o pensamento do observador. O trabalho propõe a reflexão sobre um momento histórico. Se não fosse assim, não valeria de nada.
Podemos pensar numa operação de condensação, que transmuta os elementos do real para uma condição que se pretende mais aguda… poder falar para mais gente… revelar um processo, amplificar o som daquele objeto. A operação parte do mundo real, mas desmancha o mundo, para armá-lo noutro plano. É como desmontar um brinquedo para ver o que tem dentro e, ao remontá-lo, inventar um outro. E como não há o domínio dessa máquina/mundo, o trabalho é feito por aproximações. Vai buscando sentidos possíveis, alguns significados, arranhando o mundo.
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Os trabalhos não se reiteram um no outro. Por isso, o processo traz fissuras, fraturas, negações, se desenvolve como fragmentação. Se desenvolve em pedaços, em partes. Sei lá, já são explosões.
Não acho que isso possa ser visto como um ataque, mas é uma operação negativa, são operações que criticam, descristalizam esses processos. É para que o próprio trabalho possa brotar de um outro modo. Se é para desestratificar, desmontar o sabido e o estabelecido no mundo, eu também tenho que olhar meu próprio trabalho por essa mesma chave. Não é só fazer trabalhos e continuar fazendo e fazendo…, mas é olhar para trás e ver como foi feito e pensar em como fazer aquilo ser operativo de novo, virar um outro…
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A cidade é o material que perpassa e atravessa o meu trabalho. É o seu material e também sua razão crítica. Por que trabalhar com lâmpadas fluorescentes ou com o neon, por exemplo? A luz da padaria, a luz do bar, do hotel barato, a luz colorida que tinge de azul uma esquina à noite. Isso interessa. Notar como essas luzes vermelhas, rosas, amarelas, multiplicadas de muitas maneiras nas frestas da cidade, vêm junto com as condições mais degradadas da vida na cidade. É, quase sempre, o mais frágil que aparece associado a elas. É muitas vezes o perigoso, o perverso… por isso as luzes coloridas encantam, como síntese da multiplicidade das experiências humanas.
Bem longe da luz-design, da luz-chique do lobby de hotel, da luz-moda da vitrine, percebe? São parâmetros de luz muito diferentes. Essa luz do neon, essa luz fluorescente tubular, ela vem de ambientes muito simples, as vezes precários, degradados. É disso que estou falando, é isso que me interessa na luz.
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As pessoas são parte do teatro urbano. A cidade é um canteiro de obras. Cada sujeito que trabalha sabe as operações que tem que fazer. O material bruto vira construção e constituição desse corpo social. Assim, também, a minha produção vai se constituindo desses elementos, desde os mais simples, os mais banais da nossa vida na cidade e também… dos imigrantes, passantes, figurantes, das Dolores, Darlenes, Olivias e Auroras… O meu trabalho é mais um entre tantos outros trabalhos.
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Quando uma obra é feita de materiais “catados” na rua, há uma aproximação com o outro, surge a familiaridade ou a intimidade… No caso da luz, acho que a pessoa vai muito mais sentir do que entender, vai perceber fisicamente. Não é da ordem do inteligível, da lógica, do saber. A luz atrai, mas não é só a sensação luminosa que me interessa… Depois vem uma legibilidade…
É claro que isso não acontece em todos os trabalhos. Alguns são silenciosos. Alguns são mais voltados para dentro, como, por exemplo, os BURACOS, afundados no chão escavado. E os COMPACTOS… nesses, há um inchaço da matéria, uma massa cromática em fermentação, trabalhando do lado de dentro… Por isso, talvez, eles sejam dificilmente acessíveis pelo discurso, pelo texto… Talvez sejam mais próximos dos QUASARES…
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No caso da NEGRA, aquela massa esponjosa preta está apoiada em um carrinho, uma pequena plataforma com rodas e uma haste metálica que serve de puxador, para deslocá-la de um lugar para outro. Entre outras questões (mas não vamos falar delas agora), há o carrinho… É impressionante que as pessoas não percebam aquilo como um carrinho. E aquele carro é uma espécie de citação do carrinho manual do entregador de mercadorias, do vendedor ambulante, do catador de papel. É uma alusão a um tipo de trabalho de rua, desqualificado, ou melhor, é a própria face do trabalho precarizado. Ninguém fala disso, desse carrinho manual acoplado à NEGRA, porque não interessa ao discurso formal estetizante. Só falam do grande véu, do grande conjunto de sobreposições de matéria fluida, de um negativo da noiva, da viúva… É impressionante… Se aquele trabalho estivesse apoiado diretamente no chão, ele perderia grande parte da sua potência…
Esse trabalho foi feito para a rua, mas mesmo agora, no museu, a haste e a manopla estão presentes. Elas apontam para o carrinho, para a máquina. E, mesmo se noutra escala, há ainda um resíduo de carro alegórico, extraordinário monumento sobre rodas, nos desfiles das escolas de samba – um maquinário social, um trabalho coletivo, simples e complexo ao mesmo tempo.
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Quando eu fiz a primeira ESCADA (a de 1967) aquilo era quase um jogo. A escada estava lá. Eu só consegui subir por aquele barranco íngreme porque havia sulcos na terra, feitos possivelmente por uma máquina moto-niveladora, que passou por ali para abrir a avenida. E o barranco ficou, então, recortado com “degraus”. Já estava dado – era fazer sobre uma coisa, ela mesma, só que do ponto de vista conceitual. Era simples, sem qualquer outra problemática, além de desenhar com linhas uma escada sobre a outra escada. Uma reverberava na outra: escada-percepção e escada-ação. A primeira foi experimentada por mim como escada real, o que obviamente não era, e a segunda, a desenhada, foi feita para confirmar a primeira. O que fiz foi só uma operação bem humorada sobre o conceito de desenho. Percepção e criação.
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A maior parte dos meus trabalhos surge primeiro como projeto desenhado. Depois eles são construídos em outra materialidade, outra consistência. Poucos trabalhos vêm de uma experimentação, em que a obra se constitui diretamente no fazer, como as FACAS. Mas, mesmo neste caso, tinha um conceito que presidia as operações do fazer – uma faca-ideia.
Às vezes, o projeto é um molde. Por exemplo, na instalação da XX Bienal,[1] tinha um molde. Fiz um grande desenho, primeiro, num papel Kraft. Depois, recortei e colei. Fui decalcando as linhas do contorno direto sobre a parede. Os BURACOS também foram feitos a partir de moldes. O ponto de partida era um desenho pequeno, uma anotação. Depois, esse desenho foi ampliado e transferido para o chão, com moldes específicos para cada buraco. É como são feitos os grandes afrescos. Acho que os carros alegóricos também. Algo próximo do corte e costura…
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Nem é monumental, é uma praça, é uma coisa urbana. Pode-se passar por cima dele, caminhar sobre ele. E todo o espaço passa a ser uma experiência corporal. ESCADA-ESCOLA também não é monumental. Ela convoca o corpo a participar daquele desenho. Ao contrário do que acontece com as escadas de luz que, mesmo sendo em grande escala, são visuais, são quase uma escritura, uma grafia luminosa.
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A palavra, o falar da rua, um certo nome, um poema… um enunciado… foram todos entrando no trabalho, mas de modos muito diferentes. VIA LÁCTEA, que transcreve o poema homônimo de Olavo Bilac, é composto como um jogo de caça-palavras, com letras brancas sobre um céu estrelado de Xerox. US CARA FUGIU CORRENDO é uma pichação da rua, reproduzida em neon na parede do museu. É a língua sem erudição e, como disse o poeta, com “a contribuição milionária de todos os erros”. EU SOU DOLORES vem de um lambe-lambe colado em um poste do Largo do Pari. AURORA foi enunciado em garranchos toscos de lâmpadas rosas. Foi associado, primeiro, no Rio, como a luz rosácea do nascer do dia. Depois, aqui em São Paulo, perto da rua Aurora, como nome de mulher. E em Moscou, como o nome do navio de guerra, que se juntou ao processo revolucionário. SE VENDE, com as letras de Hollywood, foi quase interditado em 2010.
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De fato, na Nova Zelândia, só foi possível fazer metade do trabalho numa passarela, aquela em que se lia REAL PEOPLE. A outra metade, ARE DANGEROUS, não pôde ser realizada. Deveria ter sido construída noutra passarela, mas a oficialidade local considerou DANGEROUS, de fato, perigoso. O trabalho foi amputado…
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Pra mim, palavra e rua são duas coisas que estão ligadas. Fiz FIGURANTES em duas versões, as duas com a linguagem da rua. Pode se dizer que são arruaças. A primeira foi feita como letreiro eletrônico luminoso, desses de posto de gasolina, anunciando produtos e serviços. Só que os serviços, no caso, eram do naipe daqueles oferecidos pelos adjuntos de Luís Bonaparte, descritos por Marx no 18 Brumário[2]: TRAFICANTES, HERDEIROS DECADENTES, BATEDORES DE CARTEIRA, EX-PRESIDÍARIOS, VIGARISTAS, DONOS DE BORDEL… enfim, uma turma de estadistas, que conhecemos bem. A segunda versão de FIGURANTES foi feita de placas metálicas, dessas usadas para indicar nomes de rua, que celebram nomes e datas memoráveis. São placas esmaltadas a fogo, na cor azul escuro. Em letras brancas vai a tipologia estudada por Marx…
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TERRA parte de uma conversa que tive há algum tempo com o Paulo Mendes da Rocha. Ele me falava que poderíamos pensar em fazer um trabalho em cima daquele grande plano que é a laje do MuBE.[3] Uma coisa para ser vista do alto. Não sei o que se passava na cabeça dele, e nem sei bem o que se passou na minha… Quando foi marcada uma exposição em homenagem a ele, lá no museu, visitei várias vezes o MuBE. Subi na laje pela primeira vez para fotografar e fazer o “reconhecimento do território”. Naquela ocasião, tive a certeza de que não dava para fazer nada. Vista do chão, a laje tem um desenho muito limpo, mas, de cima, ela é cheia de acidentes – manta de proteção térmica, canaletas para o escoamento da água, bordas arredondadas como uma bandeja, respiradouros e ralos… havia muitos acontecimentos…arquitetônicos, hídricos, visuais e matéricos… tudo muito diferente da tela em branco que eu tinha na minha imaginação. Saí de lá com a certeza de que não ia conseguir…
Então, pensei numa espécie de mensagem para ser vista de cima, bem de longe, de muito alto, dos prédios, dos aviões, de satélites, quem sabe, por astronautas em naves espaciais… TERRA é um grande luminoso azul que delineia as letras da palavra T-E-R-R-A. Primeiro fiz pequenos desenhos a lápis, e depois projetei a estrutura, pensando no peso, nos materiais possíveis, nas instalações… É um jogo com a ideia de anúncio luminoso da nave-terra, uma homenagem ao querido amigo arquiteto.
Um anúncio não visível do chão, que só poderia ser visto de uma certa altura, de um outro lugar, que não é mais o espaço expositivo do museu. Ao propor o luminoso TERRA, que ninguém poderia ler diretamente, eu quis trabalhar com a des-visibilidade do mundo, em contraposição à ideia de um mundo saturado de visibilidade, via imagens e mais imagens. De repente, se tem um trabalho que não é visível, do qual apenas se tem notícia, por ouvir dizer. E cada um tem que imaginar, pensar, supor ou desejar ver… Queria trabalhar a partir da ideia de desfazer um mundo positivado pela imagem. À noite, quando escurece, é possível ver só uma aura azul sobre a laje do museu.
[1] XX Bienal Internacional de São Paulo, 1989.
[2] MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
[3] Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia, São Paulo.